domingo, 19 de janeiro de 2014

A maneira subjetiva

Deve começar-se por distinguir claramente a maneira da originalidade. A maneira provém das qualidades particulares, portanto acidentais do artista, mas embora não tenha a sua razão de ser na coisa e na sua representação ideal, não deixa todavia de se manifestar e impor na produção da obra de arte.

Assim entendida, a maneira não é uma característica das variedades da arte em gêneros que exprimem, singularmente, um modo próprio de representação, como acontece, por exemplo, com o pintor paisagístico que concebe os objetos de um modo diferente do pintor de assuntos históricos, ou como o poeta épico que vê e exprime as coisas numa forma que não é a do poeta lírico ou dramático. A maneira é uma forma especial de conceber, própria de um sujeito dado, e um modo de execução que, se forem levados demasiado longe, podem apresentar-se em oposição direta ao conceito ideal. Considerada deste ponto de vista, a maneira é o que há de pior num artista que, em vez de se entregar ao poder da arte e o deixar livremente agir em si, o faz reverter para sua própria subjetividade com tudo o que esta em contingente e acidental. Ora, a arte, que suprime a pura e simples acidentalidade do conteúdo e da sua manifestação exterior, não pode deixar de exigir que o artista, por sua vez, apague as particularidades acidentais da sua personalidade subjetiva.

Não é, pois em face da verdadeira representação artística que a maneira se acha em oposição direta; escolhe ela para seu campo de expansão os aspectos exteriores da obra de arte e aí grava as particularidades do modo de representação subjetiva. Esta imposição da maneira é muito freqüente em pintura e em música, pois são estas as artes que oferecem, à concepção e à execução, mais vastas possibilidades e mais meios exteriores.

Uma forma particular, própria de um certo pintor, dos seus epígonos e alunos e que, à força de repetição, se torna um hábito, constitui uma imposição de maneira que se pode considerar de um duplo ponto de vista.

Temos, em primeiro lugar, o da concepção. A tonalidade da atmosfera, a folhagem, a distribuição da luz e da sombra, a geral coloração, oferecem na pintura, uma variedade infinita. Na coloração e na iluminação, sobretudo, é onde se encontram as maiores diferenças entre os pintores; o mesmo acontece com o modo de conceber. Pode, por vezes, tratar-se de uma cor que não captamos na natureza porque distraímos a nossa atenção em outras coisas. No entanto, impressionou ela certo artista que a fez, por assim dizer, sua e criou o hábito de a dar a tudo o que pinta. Isto que pode acontecer com a cor também se aplica aos objetos, à forma de os reunir, à posição deles, movimentos, caráter etc. São, sobretudo, os holandeses que nos oferecem exemplos mais significativos; basta lembrar a maneira como Van der Meer pinta as paisagens ao luar; a presença das dunas de areia em muitas paisagens de Goyen; a função que têm o cetim e outros tecidos de seda em muitos quadros de outros mestres etc.

A maneira pode alagar-se à execução, ao traço do pincel, à sobreposição e fusão das cores etc.

À medida que este modo específico de concepção e de execução se vai tornando, através da incessante repetição, um hábito, uma segunda natureza, vai-se vendo a maneira degenerar, tanto mais facilmente quanto mais característica for, numa repetição e fabricação automáticas em que o artista não participa com todo o seu espírito e toda a sua inspiração. A arte cai, então, numa simples profissão, numa simples habilidade, e a maneira que em princípio se não poderia condenar, torna-se algo de enfadonho, frio e inanimado.

Por tais motivos, deve a autêntica maneira evitar essa particularidade limitada adquirindo um caráter tal que, em vez de ser um simples hábito, não impeça o artista de ver, através dos modos especiais da representação, a própria natureza do que tem de representar, permanecendo fiel ao conceito dela. É neste sentido que se pode dizer que Goethe utiliza, ao terminar não apenas as poesias de sociedade mas também outras de um caráter sério e grave, uma maneira destinada, para umas, a atenuar o seu caráter de gravidade, para outras a colocar o leitor numa disposição mais séria. Também Horácio utiliza está maneira nas suas epístolas. trata-se de um processo de conversar e de uma conveniência social que se não deve levar demasiado longe para que possam, de novo, emergir os aspectos profundos e sérios que aparecerão, então, com maior relevo. Este processo constitui, decerto, uma maneira que faz parte da subjetividade da representação, mas de uma subjetividade mais geral, que não vai além do que é estritamente necessário à realização que se tem em vista.

Hegel
Ed. Nova Cultural