domingo, 24 de agosto de 2014

A Origem da Cidade no Oriente Médio

A cidade — local de estabelecimento aparelhado, diferenciado e ao mesmo tempo privilegiado, sede da autoridade — nasce da aldeia, mas não é apenas uma aldeia que cresceu. Ela se forma, como pudemos ver, quando as indústrias e os serviços já não são executados pelas pessoas que cultivam a terra, mas por outras que não têm esta obrigação, e que são mantidas pelas primeiras com o excedente do produto total.

Nasce, assim, o contraste entre dois grupos sociais, dominantes e subalternos: mas, entrementes, as indústrias e os serviços já podem se desenvolver através da especialização, e a produção agrícola pode crescer utilizando estes serviços e estes instrumentos. A sociedade se torna capaz de evoluir e de projetar a sua evolução.

A cidade, centro motor desta evolução, não só é maior do que a aldeia, mas se transforma com uma velocidade superior. Ela assinala o tempo da nova história civil: as lentas transformações do campo (onde é produzido o excedente) documentam as mudanças mais raras da estrutura econômica; as rápidas transformações da cidade (onde é distribuído o excedente) mostram, ao contrário, as mudanças muito mais profundas da composição e das atividades da classe dominante, que influem sobre toda a sociedade. Tem início a aventura da "civilização", que corrige continuamente as suas formas provisórias.

Este salto decisivo (a "revolução urbana", como se chamou) começa — segundo a documentação atual — no vasto território quase plano, em forma de meia-lua, entre os desertos da África e da Arábia e os montes que os encerram ao norte, do Mediterrâneo ao Golfo Pérsico.

Após a mudança de clima no fim da era glacial, esta zona se cobre de uma vegetação desigual, mais rala do que as florestas setentrionais mas contrastante com o deserto meridional. A planície é cultivável somente onde passa ou pode ser conduzida a água de um rio ou de uma nascente; nelas crescem, em estado selvagem, diversas plantas frutíferas (oliveira, videira, tamareira, figueira); os rios, os mares e o terreno aberto às comunicações favorecem as trocas de mercadorias e de notícias; os céus, quase sempre serenos, permitem ver, à noite, os movimentos regulares dos astros e facilitam a medição do tempo.

Aqui algumas sociedades neolíticas — que já conhecem os cereais cultiváveis, o trabalho dos metais, a roda, o carro puxado pelos bois, o burro de carga, as embarcações a remo ou a vela — encontram um ambiente mais difícil de aproveitar, mas capaz de produzir, com um trabalho organizado em comum, recursos muito mais abundantes.

O cultivo dos cereais e das árvores frutíferas nos ricos terrenos úmidos proporciona colheitas excepcionais e pode ser ampliado melhorando e irrigando terrenos cada vez maiores. Parte dos viveres pode ser acumulada para as trocas comerciais e os grandes trabalhos coletivos. Começa, assim, a espiral da nova economia: o aumento da produção agrícola, a concentração do excedente nas cidades e ainda o aumento de população e de produtos garantido pelo domínio técnico e militar da cidade sobre o campo.

Na Mesopotâmia — a planície aluvial banhada pelo Tigre e pelo Eufrates — o excedente se concentra nas mãos dos governantes das cidades, representantes do deus local; nesta qualidade recebem os rendimentos de parte das terras comuns, a maior parte dos despojos de guerra, e administram essas riquezas acumulando as provisões alimentares para toda a população, fabricando ou importando os utensílios de pedra e metal para o trabalho e para a guerra, registrando as informações e os números que dirigem a vida da comunidade. Esta organização deixa seus sinais no terreno: os canais que distribuem a água nas terras melhoradas e permitem transportar para toda parte, mesmo de longe, os produtos e as matérias-primas; os muros circundantes que individualizam a área da cidade e a defendem dos inimigos; os armazéns, com sua provisão de tabuinhas escritas em caracteres cuneiromes; os templos dos deuses, que se erguem sobre o nível uniforme da planície com seus terraços e as pirâmides em degraus. Estas obras e a casa das pessoas comuns são construídas de tijolos e de argila, como ainda se faz no Oriente Próximo; o tempo fá-las desmoronar e as incorpora novamente ao terreno, mas dessa forma o terreno conserva, camada por camada, os vestígios dos artefatos construídos em cada período histórico, e entre estes as preciosas tabuinhas com as crônicas escritas, que a partir de 3000 a.C. temos condições de ler com segurança; assim, as escavações arqueológicas permitem reconstruir, passo a passo, a formação e as vicissitudes das cidades mais antigas cosntruidas pelo homem, do IV milênio a.C. em diante.

As cidades sumerianas, no ínicio do II a.C. já são muito grandes — Ur mede cerca de 100 hectares — e abrigam várias dezenas de milhares de habitantes. São circundadas por um muro e por um fosso, que as defendem e que, pela primeira vez, excluem o ambiente aberto natural do ambiente fechado da cidade. Também o campo em torno é transformado pelo homem; em lugar do pântano e do deserto, encontramos uma paisagem artificial de campos, pastagens e pomares, percorrida pelos canais de irrigação. Na cidade os templos se distinguem das casas comuns por sua massa maior e meia elevada: compreendem de fato, além do santuário e da torre-observatório (ziggurat), laboratórios, armazéns, lojas onde vivem e trabalham diversas categorias de especialistas.

O terreno da cidade já é dividido em propriedades individuais entre os cidadãos, ao passo que o campo é administrado em comum por conta das divindades. Em Lagash, o campo é repartido nas posses de umas vinte divindades; uma destas, Bau, possui cerca de 3250 hectares, dos quais três quartos atribuídos, um em lotes, a famílias singulares, um quarto cultivado por assalariados, por arrendatários (que pagam um sétimo ou um oitavo do produto), ou pelo trabalho gratuito dos outros camponeses. Em seu templo trabalham 21 padeiros auxiliados por 27 escravos, 25 cervejeiros com 6 escravos, 40 mulheres encarregadas do preparo da lã, fiandeiras, tecelãs, um ferreiro, além dos funcionários, dos escribas e dos sacerdotes.

Até meados do III milênio, as cidades da Mesopotâmia formam outros tantos Estados independentes, que lutam entre si para repartir a planície irrigada pelos dois rios, então completamente colonizada. Estes conflitos limitam o desenvolvimento econômico, e só terminam quando o chefe de uma cidade adquire tal poder que impõe seu domínio sobre toda região. O primeiro fundador de um império estável (durante cerca de um século, por volta de 2500) é Sargão de Acad;, mas tarde, sua tentativa é repetida pelos reis sumérios de Ur, por Hamurabi da Babilônia, pelos reis assírios e persas. As consequências físicas de seus empreendedores são:

1) a fundação de novas cidades residenciais, onde a estrutura dominante não é o templo mas o palácio do rei: a cidade palácio de Sargão II nos arredores de Ninive e, mais tarde, os palácios-cidade dos reis persas, Pasárgada e Persépolis;

2) a ampliação de algumas cidades que se tornam capitais de um império, e onde se concentram não só o poder politíco, mas também os tráficos comerciais e o instrumental de um mundo muito maior. Nínive, Babilônia. São as primeiras supercidades, as metrópoles de dimensões comparáveis as modernas, que durante muito tempo permaneceram com símbolos e protótipos de toda grande concentração humana, com seus méritos e seus defeitos.

Babilônia, a capital de Hamurabi, planificada por volta de 2000 a.C., é um grande retângulo de 2500 por 1500 metros, dividida em duas metades pelo Eufrates. A superfície contida pelos muros é de cerca de 400 hectares, e outro muro mais extenso compreende quase o dobro da área; mas toda a cidade, e não somente os templos e os palácios, aparece traçada com regularidade geométrica: as ruas são retas e de largura constante, os muros se recortam em ângulos retos. Desaparece, assim, a distinção entre os monumentos e as zonas habitadas pelas pessoas comuns; a cidade é formada por uma série de recintos, os mais externos abertos a todos, os mais internos reservados aos reis e aos sacerdotes. Estes personagens frequentam as divindades — como se pode ver nas esculturas — e têm portanto um domínio absoluto sobre as coisas deste mundo. As casas particulares reproduzem em pequena escala a forma dos tempos e dos palácios, com pátios internos e as muralhas estriadas.

No Egito, a origem da civilização urbana não pode ser estudada como na Mesopotâmia: os estabelecimentos mais antigos foram eliminados pelas enchentes anuais do Nilo, e as grandes cidades mais recentes, como Mênfis e Tebas, se caracterizam por monumentos de pedra, tumbas e templos, não pelas casas e pelos palácios nivelados sob os campos e as habitações modernas.

A documentação arqueológica revela a civilização egípcia já plenamente formada depois da unificação do país, no final do IV milênio a.C. Os documentos encontrados nas primeiras tumbas reais explicam que o soberano no poder conquistou as aldeias precedentes e absorveu os poderes mágicos das divindades locais. Não é ele o representante de um deus, como os governantes sumérios, mas ele mesmo um deus que garante a fecundidade da terra e especialmente a grande inundação do Nilo que ocorre com regularidade num período determinado do ano. Assim, o faraó tem domínio preeminente sobre o país inteiro, e recebe um excedente de produtos bem maior que o dos sacerdotes asiáticos. Com estes recursos, ele constrói as obras públicas, as cidades, os templos dos deuses locais e nacionais, mas sobretudo sua tumba monumental, que simboliza sua sobrevivência além da morte e garante, com conservação do seu corpo, a continuação de seu poder em proveito da comunidade.

No III milênio, à medida que o Egito se torna mais populoso e mais rico, estas tumbas aumentam de imponência, embora sua forma externa permaneça bastante simples, uma pirâmide quadrangular. A maior, a de Quéops da IV Dinastia, mede 225 metros de lado e quase 150 metros de altura; é um dos símbolos mais impressionantes que o homem deixou na superfície terrestre, e segundo uma tradição lembrada por Heródoto, a que os estudiosos modernos costumam dar crédito, exigiu o trabalho de 100.000 pessoas durante vinte anos. Como se coloca semelhante obra na paisagem habitada no vale inferior do Nilo?

Sabemos que Menés, o primeiro faraó, funda a cidade de Mênfis nas proximidades do vértico do delta e cerca-a com um "branco-muro". O templo da divindade local, Ftá, não fica na cidade, mas "ao sul do muro"; ao redor, nas fimbrias do deserto, surgem as piramides dos reis das primeiras quatro dinastias e os templos solares da quinta. A forma de conjunto do estabelecimento permanece desconhecida, e não é fácil imaginar a relação entre estes monumentos colossais e  os locais de habitação dos vivos, com certeza bastante diferente da relação entre templo e cidade na Mesopotâmia.

No Egito, sobretudo nos primeiros tempos, não encontramos uma ligação, mas um contraste entre estas duas realidades, realçado de todas as maneiras possíveis. Os monumentos não formam o centro da cidade, mas são dispostos de per si como uma cidade independente, divina e eterna, que domina e torna insignificante a cidade transitória dos homens. A cidade divina é construída de pedra, para permanecer imutável no curso do tempo; é povoada de formas geométricas simples: prismas, pirâmides, obeliscos, ou estátuas gigantescas como a grande esfinge, que não observam proporções com as medidas do homem e se aproximam, pela grandeza, dos elementos das paisagens natural; é habitada pelos mortos, que repousam cercados de todo o necessário para a vida eterna, mas é feita para ser vista de longe, como o fundo sempre presente da cidade dos vivos. Esta, ao contrário é construída de tijolos, inclusive o palácio dos faraós no poder, será logo destruída e continua uma morada temporária, a ser abandonada mais cedo ou mais tarde. Uma parte consistente da população — os operários empregados na construção das pirâmides e dos templos, com suas famílias — tinham de morar nos acampamentos que os arqueólogos encontraram junto aos grandes monumentos, e que eram abandonados tão logo terminassem o trabalho.

Por outros aspectos, a cidade divina — a única que podemos ver e estudar hoje — é uma cópia fiel da cidade humana, onde todos os personagens e os objetos da vida cotidiana são reproduzidos e mantidos imutáveis. As maravilhosas esculturas reproduzem com realismo as fisionomias dos modelos, e os imobilizam numa tentativa de encerrar para sempre também os aspectos fugazes da vida.

Este intento de construir uma cópia perfeita e estável da vida humana — de acumular os recursos no além, em vez de acumulá-los no mundo presente — não prosseguiu sempre com a mesma intensidade. A economia assim orientada entrou em crise em meados do III milênio; quando ela se reorganizou — sob o médio império, no II milênio a.C. —, o contraste entre os dois mundos aparece atenuado, e as duas cidades separadas tendem a se fundir numa cidade única.

A capital do médio império, Tebas, ainda está dividida em dois setores: o povoado na margem direita do Nilo, e a necrópole nos vales da margem esquerda, mas agora os edifícios dominantes são os grandes templos construídos na cidade dos vivos — Carnac, Lúxor; as tumbas estão escondidas nas rochas e permanecem visíveis somente os templos de acesso, semelhantes aos anteriores. Entre estes marcos monumentais devemos imaginas as habitações e os arrabaldes, que hospedam uma sociedade mais variada, onde a riqueza é mais difundida. O faraó ocupa o cume desta hierarquia social, e seu poder se manifesta porque pode escolher, para seus palácios ou sua tumba, os produtos mais ricos e acabados; as roupas, as jóias e os móveis encontrados nas tumbas reais, fabricados com um trabalho de altíssima qualidade, fazem pensar numa produção ampla e abundante, da qual foram selecionados estes objetos.

Do VI ao IV século a.C., todo o Oriente Médio é unificado no Império Persa. O território examinado até aqui — desde o Egito até o Vale do Indo — goza assim de um longo período de paz e de administração uniforme, que permite a circulação dos homens, das mercadorias e das ideias de uma extremidade à outra. Na residência monumental dos reis persas — conhecida pelo nome grego de Persépolis — os modelos arquitetônicos dos vários países do impérios são combinados entre si dentro de um rígido esquema cerimonial.

História da Cidade
Leonardo Benevolo
Ed. Perspectiva

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Decepção e conflito. Síntese da distinção

Na esfera mais dos atos quee admitem diferenças de intenção e de preenchimento, ao lado desse último encontramos a decepção, a título de um contrário que o exclui. As expressões geralmente negativas, que de habito servem para designá-lo, como até mesmo, por exemplo, a expressão não preenchimento, não remetem a uma mera privação de preenchimento, mas a um novo fato descritivo, a uma forma de síntese tão específica quanto o próprio preenchimento. Isso vale para todos os casos, portanto, também para a esfera mais restrita das intenções de significação, na sua relação às intenções intuitivas. A síntese do conhecimento era a consciência de uma certa 'concordância'. Mas, à concordância corresponde, como possibilidade correlata, a 'discordância', o 'conflito'. A intuição não 'concorda' com a intenção de significação, mas 'conflita' com ela. O conflito 'separa', mas a vivência do conflito põe em relação e em unidade, é uma forma de síntese. Na medida em que a síntese anterior foi da espécie de uma identificação, a de agora é da espécie de uma diferenciação (infelizmente, não dispomos aqui de um outro nome positivo). - Esta 'diferenciação' não deve ser confudida com aquela que opõe à comparação. As oposições entre 'identificação e diferenciação' e 'comparação e diferenciação' não são do mesmo tipo. Outrossim, é óbvio que o uso de expressões semelhantes se explica por um estreito parentesco fenomenológico. - Na 'diferenciação' aqui em causa, o objetivo do ato de decepção aparece como 'não o mesmo', como 'diferente' do 'objetivo' do ato intencionante. Entretanto, essas expressões remetem as esferas mais gerais de casos do que as esolhidas até agora. Não apenas as intenções significativas, mas também as intuitivas se preenchem à maneira da identificação e sofrem decepção à maneira do conflito. O problema da delimitação natural da classe global de atos à qual pertence o 'mesmo' e o 'diferente' (podemos dizer igualmente: o é e o 'não é') será submetido, dentro em breve, a uma apreciação mais exata.

Essas duas sínteses não são, todavia, completamente paralelas. Todo conflito pressupõe algo que dirija a intenção para o objeto do ato conflitante e, em última análise, só uma síntese de preenchimento é que lhe pode dar essa direção. O conflito pressupõe como que um certo terreno de concordância. Se penso 'A é vermelho', quando na 'verdade', ele se mostra 'verde', nesse mostrar-se, isto é, no ajustamento à intuição, a intenção do vermelho conflita com a intuição do verde. Mas, é inegável que tal coisa só é possível quando tem por fundamento uma identificação do 'A' nos atos de significação e de intuição. É só assim que a intenção pode aproximar-se dessa intuição. A intenção global se dirige para um 'A' que é vermelho e a intuição mostra um 'A' que é verde. Só na medida em que a significação e a intenção se recobrem, com respeito à direção para um mesmo A, é que os momentos intencionais, dados unitariamente dos dois lados, entram em conflito, o presumido vermelho (que é presumido como o vermelho do A) não concorda com o verde intuído. Os momentos que não chegaram ao recobrimento só se correspondem através da relação de identidade; em vez de se 'ligarem' pelo preenchimento, eles se 'separam' pelo conflito, a intenção é remetida àquilo que, na intuição, é coordenado ao conflito, sendo repelida entretanto por esse algo.

O que expusemos aqui, referindo-nos especialmente às intenções de significação e às decepcões que elas sofrem, valem obviamente para toda a classe de intenções objetivantes a que aludimos anteriormente. Por conseguinte, poderemos dizer de modo geral: uma intenção só sofre decepção à maneira de um conflito, na medida em que faz parte de uma intenção mais abrangente, cuja parte complementar se preenche. No caso de atos simples ou isolados, não se pode, falar em conflito.

Edmund Husserl