quinta-feira, 3 de maio de 2012

Diferenciação entre objeto estético e Obra de Arte

Estabelecemos, agora, uma diferenciação mais nítida do que seja objeto estético e obra de arte; o primeiro pressupõe um problema ontológico naquilo que requer toda coisa percebida ou por outro no que convém chamar a coisa enquanto percebida. A diferença entre obra de arte e objeto estético, observa Dufrenne, reside nisto em que a obra de arte pode ser considerada como uma coisa comum, isto é, objeto de uma percepção e de uma reflexão que a distinguem das outras coisas sem lhe conceder um tratamento especial, mas, ao mesmo tempo, predispondo a uma percepção estética. E exemplifica: a pintura que está sobre a parede de minha casa é uma coisa para aquele trabalhador que faz mudança, objeto estético para o amador de pintura, os dois para aquele que se encarrega de sua limpeza; do mesmo modo a árvore é simples coisa para o lenhador e, talvez, objeto estético para o caminhante que passa por ela num passeio na mata. E indaga o autor se isto quer dizer que a percepção ordinária seja falsa e a percepção estética verdadeira. Não exatamente, diz ele, porque a obra de arte é também uma coisa e nós veremos que a percepção não estética pode dar-se conta de seu ser estético, sem contudo apreendê-lo e, mais profundamente, veremos que o objeto estético guarda os caracteres da coisa, tudo sendo mais do que simples coisa. Desde então, tudo isto que dizemos da obra de arte é válido como objeto estético e os dois termos podem confundir-se, mas onde se separam é, exatamente: 1) quando descrevemos a percepção estética em quanto tal, porque seu correlato é então propriamente o objeto estético, já que objeto estético e obra de arte se compreendem um pelo outro; 2) quando consideramos as estruturas objetivas da obra de arte, por que a reflexão sobre estas estruturas implicam precisamente que se substitua a reflexão à percepção que cessa de perceber o objeto para estudá-lo como ocasião de perceber, 'isto que faz aliás, aparecer nela, a exigência de uma percepção estética'.

No problema da discriminação de uma obra de arte, vale relembrar a tese mensurativa de Etienne Souriau, levando em conta não a qualidade, mas a quantidade do trabalho artístico que intervém em sua produção, a arte definida como atividade de criar as coisas, onde se pode discernir, num processo de fabricação dada, o trabalho propriamente criador e o trabalho rigorosamente produtor, estabelecendo-se, desse modo, o percentual no trabalho total do trabalho artístico. Nesta tese de Souriau transluz a função eminentemente poética da Poesis grega, tendo-se em vista que a presença é um requisito de toda obra de arte e que esta é o que resta do objeto estético, nada se plenifica senão no sensível. A percepção aguça a sensibilidade, não só na música, na pintura, como em todas as artes maiores. Como observa Dufrenne, a obra de arte permanece como uma possibilidade permanente de sensação. O conjunto sensível se transforma em idéia que a consciência tende a reanimar. Assim, a obra de arte é tudo isto que suscita o objeto estético, ela é uma matriz de sensações, é uma potencialidade ou uma possibilidade. Objeto estético e obra de arte se compreendem, se nutrem um pelo outro, uma suscita a outra. Redunda dessa conjunção que toda experiência, por sua vez, está lastreada no elemento sensível que o leva espontâneamente à reflexão.

Estamos no mundo. Mas é nele que realizamos o destino da subjetividade e é nele que nos intencionamos através das coisas ou dos fenômenos aparentes ou inaparentes que nos conduzem perceptivamente ao real. A obra de arte, como assinala Dufrenne, 'se reencontra neste mundo de objetos onde se mesclam de forma inextricável o natural e o cultural, a coisa e o objeto fabricado'.

Pergunta-se, primeiramente, no confronto que o homem tem com a natureza se esta não é uma coisa inumana. A resposta, porém, é que esta deixa de sê-la desde que o homem a possua, isto é, que ele a sinta e a explicite. O objeto estético não desaprova a natureza, ao contrário, com ele se põe de acordo, quando ela se torna estetizável, pois se assim não fora, não teríamos as telas paisagísticas, nem os múrmurios dos rios ou das cascatas estereotipadas na pintura, na música, na poesia. Não teríamos estetizadas através dos artistas, as chuvas, as tempestades, as praias, as montanhas grandiosas ou a vastidão dos oceanos. Não teríamos a 'Sonata ao Luar', de Beethoven, ou o 'Clair de Lune', de Debussy, nem o 'Murmúrio da Primavera', de Syndrin, nem a montanha de Cézanne. Assim, para que se configure o objeto estético é necessária a abertura da sensibilidade para uma percepção e nisto a presença teimosa de uma coisa.

Mas para que o objeto estético no seu todo se plenifique na sua glória, é mister que ele se formalize, que ele ultrapasse a matéria dada. É justamente neste sentido que E.Lévinas assevera que a percepção tem o condão de liberar o sensível do objeto bruto, e neste acontecimento estético é que 'o acontecimento da sensação retorna à impersonalidade dos elementos'. A arte, escreve M. Dufrenne 'reabilita bem o sensível, alterando ou suprimindo a figura do objeto, mas sua desqualificação não é renúncia de toda significação: um sentido é sempre imanente ao sensível e este sentido é primeiramente a forma que manifesta ao mesmo tempo sua plenitude e sua necessidade'. No fundo, prossegue Dufrenne, 'o apogeu do sensível não fez senão assinalar o desabrochar da forma, pois é por esta que o objeto estético cessa de existir como meio de reprodução de um objeto real e existe por ele mesmo. Esta suficiência ontológica que a forma outorga ao sensível que ela unifica nos permite dizer que o objeto estético é natureza. O sensível, fixado, indomado, animado, chegado a ser objeto, constitui uma expressão que o poder anônimo e cego da natureza. O objeto estético está aí e a primeira coisa que nos exige é a confissão de sua presença, não pela náusea, mas antes pela alegria. Assim o objeto estético é natureza por essa força do sensível que nele se exprime, mas não é potente senão pela forma que é, primeiramente forma do sensível. Ora, esta forma é imposta ao objeto pela arte, visto que ela tem criado paradoxalmente o objeto estético não é natural senão porque é artificial.

Mas se o objeto é dito artificial porque criado pelo artista, cabe indagar se o objeto usual (comum) que demanda utilidade pode enquadrar-se naquela categoria. O problema é o mesmo, isto é, se o objeto usual como o natural pode ser estetizado. A resposta é, portanto, afirmativa. Como tão bem observa Dufrenne, a poltrona na qual me agrada recostar pode ser confortável sem ser bela, posso visualizar um objeto qualquer que me sirva, um jarro, uma xícara, uma toalha, uma casa sem me sensibilizar. Mas se percebo xícaras diferentes posso ficar atraído por algumas que apresentem certos coloridos, o que não aconteceria se elas fossem simplesmente brancas; da mesma forma, posso me encantar com toalhas de matizes que me sejam agradáveis à vista. Em vez de uma toalha totalmente marron, por exemplo, compraria uma toalha cheia de quadrados ou bolinhas amarelas, vermelhas, azuis, verdes. De outro lado, há trabalhos ditos artísticos que não comovem, nem nos inebriam, uma poesia, por exemplo, pode ser totalmente indiferente a um empresário ou a um homem de negócios. Pois até mesmo a arte, em certas épocas, ou em certos meios, tem sido considerada como objeto de luxo, ou como vituperavam os niilistas russos, era tida como coisa de gente desocupada e ociosa.

Assim, tendo em vista que as artes podem ser classificadas em artes maiores e artes menores, não nos surpreende que todo objeto seja esteticamente percebido e, neste caso, pode ser considerado belo.

Arte e Dialética (p.138 à 141)
Deneval de Oliveira
Instituto Nacional do Livro