domingo, 29 de abril de 2012

Arquitetura de circunstância

O século XVIII brasileiro viveu sob o signo do ouro, principalmente. Não apenas pelo que a mineração representou para o fenômeno do povoamento interior, pelo significado complementar que conferiu afinal ao ciclo bandeirante e razão que facultou ao ciclo pastoril, que nele encontrou mais uma justificativa para o tipo preferido de povoamento ralo, especialmente vantajoso nas então condições demográficas, mas também por causa das iniciativas da administração ultramarina, tendentes ao resguardo dos interesses do fisco, as quais, posto que de sentido sensivelmente negativo para a vitalidade da Colônia, devem ser considerados como preliminares de fenômenos que exerceram profunda influência na formação nacional. A atração das Minas Gerais, além de rematar o despovoamento paulista, levado a cabo pela aventura bandeirante, sugar a "população agrária do Rio de Janeiro, do Recôncavo Baiano, de Pernambuco e de todo o Nordeste", exaurindo-os, semeava apreensão na própria Metrópole, em cujo Conselho Ultramarino se advertia que "por este modo se despovoará o Reino, e em poucos anos virá ter o Brasil tantos vassalos brancos como tem o mesmo Reino". À Coroa, já então transformada em dócil instrumento da Inglaterra, pouco se lhe dava o destino de Portugal e da Colônia; o que interessava era o fisco. E, no sentido de protegê-lo, tudo foi feito, tudo foi tentado. Aliás, antes mesmo que o problema se evidenciasse em toda a sua plenitude, no fim do século anterior, o lúcido Camara Coutinho já relatara a situação das comunicações com as Minas e aconselhara o trancamento das estradas, como meio de evitar os descaminhos do ouro. Trancaram realmente, não só as estradas, mas os rios também, como o Doce. Estas medidas atingiram a região interposta entre o vale do rio Paraíba e o mar, cuja circulação transversal foi então submentida a severo controle. Padres, reinóis, colonos, vindos por mar, e toda a sorte de estrangeiros que intentavam alcançar as Minas pelo litoral norte de São Paulo, eram aí barrados pela serra abrupta e pelos agentes do Governo. Isso determinou uma estranha concentração de gente nesta marinha. São Sebastião e Ubatuba tiveram um acréscimo demográfico, notável em confronto com as demais zonas da Capitanis: gente que aí abicava aguardando uma oportunidade, uma brecha, que lhe permitisse atingir o Eldorado mineiro. Para o autor do Santuário Mariano, frei Agostinho de Santa Maria, este litoral "he admirável sítio para receptáculo de omizados, & facinorosos, de que tem muyta abundancia...". Muitos deles aí ficaram e se estabeleceram com engenhos e fazendas nas citadas vilas. As habitações e fábricas que então construíram não resultaram portanto, de um processo criador local, como reinventação e como caráter, mas se filiam a modelos fluminenses e ilhéus, alguns apresentando uma feição um tanto fidalga, que contrasta com a vida roceira da segunda metade do século XVIII paulista.

De fato, os "restos" arquitetônicos do fim do século XVIII e começo do século XIX aí encontrados, posto que muitos deles apresentem reformas realizadas ao tempo em que esta marinha teve uma relativa vitalidade econômica resultante da riqueza cafezista, que aí influiu em meados do século passado, reformas essas caracterizáveis com relativa facilidade, oferecem uma demosntração cabal de que aí se desenvolveu uma arquitetura originária de outras fontes diretas, diversas daquelas que inspiraram as construções do planalto, nas suas diferentes fases de formação social e econômica. A análise do programa, do esquema construtivo e dos resultados plásticos das residências da marinha norte de São Paulo, e a sua interpretação, acusam elementos legítimos de diferenciação e peculiaridade.

Nas residências rurais, agenciadas sempre em função do transporte marítimo e em condições fáceis para o aproveitamento das ribeiras, cujas águas eram utilizadas para acionar moendas, os setores de trabalho e moradia foram resolvidos num único bloco de construção, proporcionando soluções de intercomunicação e valendo-se da topografia característica para organizar os diferentes espaços especializados: habitação e fiscalização, moagem de cana e subsequentes tratamentos, depósitos, expedição etc. Esta solução compacta de sede de engenho não chegou a sacrificar, contudo, certa privatividade mínima da residência, que fica preservada, nos pontos de intercurso quase obrigatório, por meio de disposição extremamente engenhosa e extremamente condicionada à definição particular do projeto. São notáveis, nesse sentido, os dispositivos de fiscalização de trabalho de pontos privativos da habitação, a escolha de espaços alpendrados de modo a garantir boa orientação folgada vista e adequada posição. No engenho São Matias, a fiscalização do trabalho era feita por meio de uma plataforma interna, voltada para os espaços de trabalho, cobertos, e para o exterior; no Engenho d'Água, o trabalho era fiscalizado da sala principal da residência, através de uma pequena janela interna, estrategicamente disposta. os alpendres de ambas, voltados para o mar, constituem simultaneamente elementos de acesso à residência e posições de comando, na paisagem e no espaço que circunda a construção. A sede do Engenho d'Água recebeu um acréscimo que, além de aumentar o alpendre, veio complicar sobremaneira a solução do telhado da residência, determinando aí soluções inseguras e frágeis. Esta reforma deve datar do século passado e, embora tenha desnaturado o projeto original, que era especialmente modesto no setor residencial, não chegou a prejudicar a excelência da solução de conjunto.

O esquema construtivo destas sedes de engenho aproveita, para o embassamento da residência e estrutura dos locais de trabalho, a pedra entaipada, e para os pavimentos altos, ou a gaiola, recheada de tijolos, ou o pau-a-pique. No telhado, de uma armadura de madeira especialmente complicada, devido aos grandes vãos reservados aos locais de trabalho, comparece, em função mesmo da vastidão coberta e da multiplicidade de águas de escoamento, o rincão, ao qual a arquitetura paulista sempre se mostrou tão avessa, talvez devido às dificuldades de resolver a calha aí necessária. No Engenho d'Água, a calha era formada por uma peça de madeira, escavada no sentido longitudinal, e recoberta com telha de canal. Este terror ao rincão é delatado na fazenda Santana, onde os corpos procuram se desgarrar um do outro para evitar o compromisso da calha.

O apuro plástico que comparece em algumas destas construções, como a São Matias, por exemplo, é um sinal de gente que procedia de locais onde a construção residencial teria passado por uma fase evolutiva bastante completa, atingindo uma excelência de desenho, difícil de ser explicada numa zona tradicionalmente pobre como o litoral norte do Estado. Daí, no geral, o projeto ser mais apurado do que a própria construção. A não ser num caso como o da atual residência urbana do senhor Paccini, onde tanto o projeto como a construção mantêm um nível técnico dos mais altos. Embora meio desfigurada pela introdução dos gradis de ferro, que, em 1838, substituíram os primitivos balcões de madeira, e pela pintura dos tetos que datam provavelmente da mesma época, talvez mesmo de alguns anos antes, esta peça da arquitetura residencial paulista é notável. E esta sua notabilidade, em meio aos estilos severos e roceiros que caracterizaram a residência tradicional do Estado de São Paulo, indica uma solução individualista, peculiar, especial, só explicada pela arribada de gente estranha num ponto do Estado em que nem a riqueza pública e nem as condições de exploração extensiva facultariam a instalação progressiva de uma sociedade capaz de justificar tão apurada peça residencial.

Luís Saia
Morada Paulista
Ed. Perspectiva