Ligo, ou, melhor, identifico propositalmente o problema da arte com o dos estudos sobre a arte. Se pela palavra arte não entendemos uma atividade abstrata do espírito, uma entidade metafísica, mas um conjunto de coisas nas quais reconhecemos uma afinidade estrutural, está claro que não é possível ocupar-se da arte sem se ocupar dessas coisas, isto é, dos produtos das técnicas artísticas. Justamente porque a produção artística está em crise, o problema do patrimônio artístico assume um destaque maior. É fácil constatar que, quanto mais se veio reduzindo o campo das funções dos bens artísticos, tanto mais se estendeu o dos conhecimentos científicos correlatos. Enfim, pode-se dizer que os produtos da arte, ou, mais precisamente, das artes, se inserem no contexto cultural contemporâneo dominado pela ciência, na medida em que são sustentados por uma ciência da arte (que no fundo, é história da arte). A passagem do estágio da fruição imediata ao da fruição mediada de maneira "científica" implica precisamente uma "crise" que, sem sombra de dúvida, pode comportar perdas relevantes e talvez irremediáveis naquilo a que chamamos patrimônio artístico. Essa crise concretiza-se na dificuldade objetiva de conciliar a presença dos produtos de uma cultura estruturalmente artística com os de uma cultura estruturalmente científica e tecnológica. Fica claro, no entanto, que a relação não poderá, em hipótese alguma, ser de mão única e que, portanto, da presença física de bens artísticos num contexto não-artístico, se esperam (desejando-os ou temendo-os) certos efeitos sobre o sistema cultural e produtivo em ato. Daí a enorme importância das estruturas de mediação, ou seja, das nossas disciplinas. Na verdade, está claro que a sobrevivência do patrimônio artístico não implica apenas questões de gosto, mas também de coexistência e de co-funcionalidade. Explicando-nos melhor, é o problema que se apresentam em termos graves nas cidades modernas cujas estruturas insistem nas estruturas de cidades antigas, que correspondem, portanto, a um sistema cultural radicalmente diferente. As obras de arte — quer se trate de monumentos, quer de objetos móveis — ainda constituem o tecido ambiental da vida moderna. Se as conservamos, ou seja, se toleramos ou desejamos a sua presença. é porque ainda têm significado. Não só isso: a tendência a desambientá-las, vendê-las, exportá-las, destruí-las, também implica, ainda que de modo negativo, o reconhecimento de um significado delas. O que a especulação imobiliária fez com as cidades históricas é o resultado de um juízo, ainda que inconsciente, de não-valor e de uma vontade destruidora substancial e pervertida, ainda que inconfessa. A luta não é entre cultura e incultura, mas entre duas culturas, a segunda das quais tem como meta a destruição da primeira, tida como oposta e como obstáculo a seu desenvolvimento.
Está em andamento um fenômeno de rejeição da história pelo pragmatismo que caracteriza o mundo moderno. Para indicar apenas alguns exemplos: a desambientação dos monumentos, a destruição dos tecidos urbanos, a diáspora das obras de arte de suas antigas sedes e mesmo das velhas coleções, sua redução a simples mercadoria por parte das organizações comerciais, a ação puramente defensiva e não programada dos organismos de defesa, a pretensão de subordinar a conservação a uma falsa adaptação à exigência ou ao gosto moderno. Um estágio ulterior da crueldade — teria dito Hogarth — é a desambientação do ambiente, ou seja, sua degradação voluntária, ainda que, por vezes, ela venha a ser enganosamente apresentada como valorização ou adaptação às exigências da vida moderna.
A presença de obras de arte é sempre caracterizadora de um contexto cuja historicidade manifesta. Uma vez que é o contexto que determina as idéias de espaço e de tempo, estabelecendo uma relação positiva entre indivíduo e ambiente, descaracterizar o ambiente destituindo-o das suas presenças artísticas tradicionais é uma maneira de favorecer as neuroses coletivas, que se exprimem, mais tarde, em atos de rejeição da civilização histórica, que vão desde o pequeno vandalismo e o banditismo organizado até os fenômenos macroscópicos de violência e de terrorismo — e todos sabem que este é o preço a ser pago pelo não desejado triunfo da sociedade de consumo.
À desambientação dos monumentos, isolados nos contextos sociais, acopla-se o distanciamento das obras de arte das sedes originais: as obras são encaminhadas nos diversos canais do mercado e sabe-se que, não raro, ao longo desses canais, elas são adulteradas, transformadas por restaurações vulgares, praticamente destruídas.
O critério de qualidade instaurado pela estética idealista com a definição da arte em termos de categoria do espírito traduziu-se na cômoda prática de salvar apenas as obras-primas, abandonando o resto ao seu destino. Devemos a este absurdo critério seletivo a destruição de conjuntos urbanos inteiros, só porque não eram "monumentais", a dispersão de grande quantidade de pinturas e esculturas que não eram atribuídas a grandes mestres, a irremediável perda de quase toda a produção do artesanato, porque considerada "menor". Tanto quanto a cultura atrasada, a condição de inferioridade econômica põe em risco o patrimônio artístico do nosso país: para agradar aos países mais ricos, a Itália chegou até a abolir a frágil defesa do imposto sobre a exportação das obras de arte antiga.
Não se pode deixar de reconhecer que os museus são um porto de salvação, pelo menos para as poucas obras que conseguem ali chegar; mas é absurdo pensar que esses coletores possam recolher tudo o que é desambientado. Antes de mais nada, é um erro conceber o museu como um coletor ou um depósito; ele deve ser local de pesquisa científica e de atividades didáticas organizadoras. Em segundo lugar, a diáspora das obras de arte não descaracteriza apenas o ambiente, mas as próprias obras de arte.
Ao critério da seleção de acordo com a qualidade, que dissolvia os tecidos históricos, sucedeu o critério, com certeza mais rigoroso, da catalogação integral, à qual deveria corresponder, no plano pragmático, o da conservação integral. Entretanto, a conservação integral é objetivamente impossível. Não se pode pretender que o ambiente da vida contemporânea permaneça idêntico ao do passado (além do mais, de que passado?), nem tampouco que se bloqueie o processo natual de envelhecimento e desagregação das coisas. Por isso, a determinação das relações complexas entre o antigo e o moderno deve basear-se em metodologias críticas claras, ainda que não necessariamente idênticas. A proteção dos patrimônios culturais deve certamente ser conservacionista, mas não conservadora.
Cada disciplina científica, além de uma metodologia, tem uma deontologia. Do ponto de vista deontológico, é incompatível com a disciplina crítica tudo aquilo que tende a privatizar os próprios objetos da pesquisa científica. O erro deontológico da especulação imobiliária ou do mercado de antiguidades projeta-se como erro metodológico na pesquisa. De fato, é impossível direcionar uma crítica de arte a nada mais que ao conceito de valor; todavia, a identificação do valor com o preço só pode distorcer os procedimentos e as finalidades da disciplina. Não tem sentido o argumento com o qual em geral se defende a concepção mercantil do patrimônio cultural: os artistas sempre trabalharam para compradores, que sempre retribuíram o trabalho deles. É verdade. Mas cada época avalia segundo seus próprios conceitos de valor, e a nossa nega a identificação da obra artística com o bem privado. Eis por que afirmo que todo processo de privatização do bem cultural tem uma conotação reacionária, que, em vão, alguns procuram mascarar com um marxismo falso e vulgar.
Dentre os casos de destruição voluntária do legado que a história nos deixou, o mais macroscópico é o da cidade. Como espaço da vida comunitária, o espaço urbano é sem dúvida um bem público, cuja privatização é tão repugnante, no plano moral, quanto a privatização do ar que respiramos. Todavia, o espaço urbano em geral é privado e objeto de especulação. O mau urbanismo e a má arquitetura do nosso tempo devem-se ao fato de que os construtores não constroem para lucrar com a construção (como seria correto), mas para especular com o terreno — o que é um caso típico de uma economia privatizante que tem como resultado a não-produção de arquitetura esteticamente intencionada. É por serem as cosntruções especulativas irremediavelmente destituídas de valor estético que a cultura do nosso tempo vê-se obrigada a admitir aquilo que, do ponto de vista lógico, é um simples absurdo: a distinção entre "centro histórico" e periferias, quantitativamente enormes mas destiuídas de toda qualidade, quer no plano do valor estético, quer no do documento histórico. Pode-se deduzir daí que a falta de valor se verifica onde o valor é identificado com o preço e a utilidade social, confundida com o lucro privado. Não lhes parece uma grotesca deformação o fato de que a qualidade (ainda que degradada) de uma cidade como Roma se reduza a poucos hectares de centro histórico, em cujos limites cessa a dimensão restrita do valor e começa a dimensão ilimitada do preço? Não lhes parece absurdo que, como no caso das proibidas mas toleradas "reestruturações" empreendidas nos centros históricos, só se considere artística e passível de conservação a fachada de um edifício?
O que se delineia no presente e no futuro imediato não é de maneira alguma uma oposição entre uma vontade de conservação e uma vontade de renovação. É inevitável que tudo se renove, ainda que eu não esteja em absoluto persuadido de que as modernas portas de bronze de Emilio Greco renovem a fachada do Dono Orvieto (que, por outro lado, não tenho nenhum desejo de renovar). Todavia, o novo deve produzir-se segundo metodologias científicas. Portanto, o debate não é entre velho e novo, nem tampouco entre pessoas que gostam do velho e pessoas que gostam do novo, mas entre duas disciplinas cujas diferenças metodológicas sempre poderão resolver-se no plano dialético.
Temos o dever de projetar os desenvolvimentos metodológicos da nossa disciplina. Em primeiro lugar, precisamos dar a ela procedimentos e meios de pesquisa adequados aos das demais disciplinas científicas. O computador? Sim, o computador, porque a nossa disciplina não deve posicionar-se num plano de informação desmedidamente inferior ao das outras disciplinas. A classificação integral? Sim, a classificação integral, porque a nossa metodologia não deve partir de escolhas a priori, de discriminações arbitrárias de arte e de não-arte. A restauração como procedimento científico de pesquisa? Sim, a restauração como procedimento científico de pesquisa, porque ela não deve ser mais remédio para danos sofridos, nem restituição de uma juventude perdida, mas determinação da consistência real da obra, da forma como nos é dado alcançar graças a nossas metodologias e a nossos equipamentos científicos.
A universidade ainda não cumpre, como deveria, a tarefa de formar estudiosos capazes de dar um enfoque realmente científico à proteção dos bens culturais. Não pode satisfazer essa exigência porque os ensinamentos de arqueologia e de história da arte, no âmbito de uma faculdade de letras, não podem ser rigorosamente especialistas nem ter, como deveriam, a finalidade de "zelar" pelas coisas. Em altos brados pedimos que a gestão do patrimônio cultural seja tirada das mãos dos burocracistas e confiada aos especialistas; mas o que faz o Estado para que as suas universidades formem especialistas? Em altos brados pedimos que os responsáveis do patrimônio cultural não estejam sujeitos a dependência hierárquica de qualquer tipo e sejam investidos de uma autoridade que lhes permita fazer frente aos que, de alguma maneira, tentam distorcer a proteção para favorecer interesses privados; mas o que faz o Estado para que esses responsáveis tenham a autoridade e a categoria necessárias? Em altos brados protestamos que nossos alunos devem poder estudar em contato direto com os objetos reais dos estudos (para ficar bem claro: os originais dos museus, não os slides), utilizando inclusive a experiência dos funcionários das superintendências, que todos gostaríamos de ver ensinando nas universidades; mas o que faz o Estado para suprimir a absurda distinção entre catedráticos e funcionários técnicos?
Infelizmente, algo ele fez ou está fazendo: o curso de graduação — Udine e Viterbo — para conservadores de bens culturais. A instituição desses cursos de graduação sanciona de uma vez por todas a preeminência do empirismo sobre a pesquisa científica e da burocracia sobre a ciência. A figura do "curador de bens" apresenta-se, desde já, deformada, monstruosa, expressiva apenas de uma subcultura dócil a uma subpolítica. As categorias disciplinares, só para citar um exemplo, não dependerão de distinções de campos de pesquisa, mas da estrutura organizativa dos serviços. Teremos, portanto, imaginem só, o especialista em bens móveis e o especialista em bens móveis ambientais; a arqueologia formará uma só coisa com a arquitetura e o ambiente. Nenhuma garantia, naturalemte, a respeito da cultura geral dos curadores de bens: devem desenvolver-se como funcionários cumpridores da hierarquia e já é muito que se queira dar a eles um verniz disciplinar. O empírico doutrinado é, em termos da sobrevivência do patrimônio cultural, o perigo maior. Posso imaginá-lo como promotor de portas de bronze para todas as catedrais românticas e góticas, defensor da beleza do casamento antigo-moderno, entusiasmado promotor da aproximação "genial" contra o pedantismo do método.
À mediocridade do curador de bens móveis, imóveis, arqueológicos, monumentais, ambientais não mais irá se contrapor a figura estudiosa do arqueólogo e do historiador da arte. De fato, quem se forma em letras com teses de arqueologia ou história da arte como única saída profissional próxima o emprego nos serviços de proteção do patrimônio cultural, e os estudantes preferirão tornar-se curadores de bens. Assim, não haverá mais pesquisa científica séria no âmbito das cadeiras de arqueologia e de história da arte.
É bem verdade, fomos nós que pedimos que a arqueologia e a história da arte tivesse como objetivo último "zelar" pelas coisas físicas que constituem a fenomenologia das duas disciplinas, que dissemos que até mesmo a pesquisa mais abstratamente teórica tem como objetivo supremo a práxis da conservação dos bens culturais, mas víamos esta práxis como fator de incentivo e de atribuição de metas à pesquisa científica. De fato, é por certo legítimo passar do assunto teórico à verificação no plano prático, mas não é possível passar do plano prático ao teórico, do empírico ao científico.
Julguei ser meu dever denunciar perante todos vocês, caros colegas, uma maquinação em ato contra a dignidade científica dos nossos estudos, não menos contra a integridade e a conservação inteligente do patrimônio cultural, e pedir a todos que expressem um voto para impedir essa nova tentativa de degradar a pesquisa, impedir o caráter científico da ação protetora do patrimônio cultural e , por fim, levar a nossa cultura a ser cada vez mais medíocre ou provinciana.
Roma é uma cidade que deve seu alto prestígio internacional ao patrimônio artístico que tem, imenso apesar de sistemática, brutalmente depredado e devastado em épocas remotas, recentes e recentíssimas. Recebam, portanto, a saudação da cidade que, neste momento, tem como prefeito um historiador da arte, e os votos de que os trabalhos de seu simpósio concorram para prevenir e esconjurar outras e maiores desventuras.
Giulio Carlo Argan
História da arte como história da cidade
Ed. Martins Fontes