Há nesta atividade criadora um dom e um sentido que permitem apreender as formas da realidade, e no espírito gravar, graças a uma visão e uma audição atentas, as variadas imagens da realidade existente; a isso acrescenta-se uma memória capaz de conservar a lembrança do colorido mundo destas imagens multiformes. Não deverá, pois, o artista entregar-se desde o início às suas concepções pessoais e antes lhe cabe abandonar a região incolor do chamado ideal para se embeber de realidade. Arte ou poesia que comecem no ideal são sempre suspeitas, pois o artista deve inspirar-se, não no reservatório das abstrações gerais, mas na vida; é que a missão da arte não é exprimir pensamentos, como a filosofia, mas formas exteriores e reais. Este é o ambiente próprio do artista; muito há de ele ter visto, ter ouvido e memorado, e certo é que sempre os grandes homens possuíram uma vasta memória. É que o homem retém aquilo que lhe interessa, e um espírito profundo alarga os seus interesses a objetos inumeráveis. Assim começou, por exemplo, Goethe, e nunca deixou, durante toda a vida, de alargar o círculo das suas intuições. Tal dom e tal interesse por uma determinada concepção do real na sua forma real, bem como a faculdade de reter as coisas vistas e ouvidas, é o que constitui a terceira condição que o artista deve satisfazer. Este conhecimento exato das formas exteriores será acompanhado de uma íntima familiaridade com o mundo interior do homem, com as suas paixões de alma e todos os fins que o atraiam, duplo conhecimento a que se acrescentará ainda o da maneira como o íntimo do espírito se exprime na realidade e exteriormente se manifesta.
Não se limita, porém a fantasia à simples apreensão da realidade exterior e interior, porque a obra de arte não é apenas uma revelação de espírito encarnado em formas exteriores, e deverá, antes de tudo, exprimir a verdade e a racionalidade do real representado. Esta racionalidade do assunto escolhido pelo artista não estará apenas presente na sua consciência para o estimular, mas o artista há de entrever, à força de reflexão, o seu fundo de verdade e o seu caráter essencial. Sem a reflexão, o homem não adquire consiciência do que se passa em si, e o que mais nos impressiona numa obra de arte é isso mesmo, que facilmente podemos verificar, de o seu assunto ser longamente meditado, considerado em todas as suas partes, examinado em todos os aspectos. Uma fantasia fácil jamais produzirá uma obra durável. Com isto, não queremos nós dizer, que o artista deva formular em pensamentos filosóficos a verdade das coisas que conjuntamente constitui a base da religião, da filosofia e da arte. O artista não precisa da filosofia, e se pensar como filósofo, entrega-se a um trabalho que é oposto à forma de saber própria da arte. A missão da fantasia apenas consiste em ter consciência desta racionalidade intríseca, e em tê-la, não na forma de proposições e representações gerais, mas na de uma realidade concreta e individual. Por isso o artista deve exprimir o que em si vive e se agita mediante as formas e aparências sensíveis cujas imagens e modelos apreendeu e conservou, dominando ao mesmo tempo tais formas e aparências de modo a obter delas uma expressão total e real e do conteúdo racional, tem o artista de apelar, por um lado, para a reflexão calma e vigilante do seu sentimento. É, pois, absurdo afirmar que poemas como os de Homero foram imaginados pelo poeta enquanto dormia. Sem reflexão, sem escolha, sem comparações, o artista é incapaz de dominar o conteúdo que pretende tratar, e um erro é pensar que o verdadeiro artista não sabe o que faz. Nunca ele poderá dispensar a concentração da alma.
Graças a esta sensibilidade que anima e embebe a totalidade, o artista faz do seu assunto e da forma em que o concebe algo que se confunde consigo próprio, que lhe pertence propriamente, que faz parte do seu mundo mais íntimo e mais subjetivo. A representação concreta leva todo o conteúdo para o domínio da coisa exterior e só a sensibilidade mantém a sua unidade subjetiva com o eu íntimo. Neste aspecto, o artista não só deve ter experiência do mundo em todas as suas manifestações extrínsecas e intrínsecas, como ainda é preciso que haja padecido grandes sentimentos, que o seu coração e o seu espiríto tenham sido profundamente emocionados e comovidos, que muito tenha jubilado e penado, para se achar em estado de exprimir em formas concretas as profundidades insondáveis da vida. É por isso que o gênio desabrocha durante a juventude, como acontece, por exemplo, com Goethe e Schiller, mas só os homens formados pela idade são capazes de imprimir na obra de arte o sinal da maturação.
G.W.F.Hegel
Estética: O belo Artístico ou o Ideal
Ed. Nova Cultural