A arte agiria, pois, como vivificante, como um fortalecedor da vontade moral, preparando a alma para se opor com eficácia as paixões. Neste sentido se diz que à arte deve presidir um intuito moral, que a obra artística deve possuir um conteúdo moral. Precisa a arte conter algo de tão elevado que subordine tendências e paixões, precisa irradiar uma ação moral que encoraje o espírito e a alma na luta contra as paixões.
Nos últimos tempos, este modo de ver provocou numerosas polêmicas. Observou-se, em primeiro lugar, que semelhante fim é indigno da arte. Se é preciso, a todo custo, determinar um fim último à arte, que este fim seja tal que se baste a si mesmo; só poderia ser, portanto, um sim em si. Dizer que a missão da arte é agradar, ser origem de prazer, corresponde a determinar um fim puramente acidental que não podia ser o da arte. A religião, os costumes, a moral constituem já objetos existentes em si, e quanto mais a arte contribuir para suavizar os costumes, tanto mais elevado será o fim atingido. São absoluto estes críticos, e pretender conformar com eles a criação das formas artísticas corresponde a determinar um conteúdo preciso à arte. Como expressão deste conteúdo, a arte tem servido para instruir os povos.
Contesta-se, todavia, que seja este determinado conteúdo o fim último da arte. Esta reserva refere-se sobretudo ao modo da representação. Pois pretende-se que os ensinamentos morais da arte tenham a forma de proposições abstratas, de reflexões mais ou menos teóricas, ou afirmar-se apenas que as abstrações e reflexões desempenham o principal papel, relegando para uma figuração secundária o elemento sensível, mero envoltório abstrato? Em qualquer dos casos ignora-se completamente a natureza da arte. Pelo conteúdo, a obra de arte é individual e concreta, imagem que se dirige aos sentidos. Se o conteúdo for de tal natureza que não permita a imaginação, fica completamente secundarizado o elemento imaginífico, e o conteúdo quebra-se, dividido em duas partes: uma abstração coberta de ornamentos exteriores que não passam de simples aparência. Uma proposição abstrata basta-se a si mesma sem que recorra a ornamentos exteriores que só suscitam o aborrecimento por não haver correspondência entre o conteúdo e a forma.
De uma obra de arte, até no sentido mais autêntico da palavra, é sempre possível extrair, consequências e conclusões. Como o de tudo o que acontece na vida real e concreta, também dela se podem deduzir ensinamentos. Isso se fez sobretudo no passado, como se verifica nos prefácios à obra de Dante, onde se indica sempre aquilo em que consiste a alegoria, que quer dizer, o ensino geral que cada canto supõe. Este método utiliza a arte para formular um ensinamento, para proteger com a autoridade e para o justificar com o prestígio de uma obra artística. Nada temos a dizer contra este método, desde que a forma artística não degenere em simples ornato para amenizar um ensino abstrato e que o conteúdo mantenha, com a forma figurada, uma unidade que constitui o aspecto essencial. Aquilo que, sobretudo, se exprobou, nesta maneira de ver, foi a subordinação do que há de sensível na obra de arte a proposições morais abstratas.
Não continuaremos a insistir sobre este ponto. No entanto, as condições implícitas nesta maneira de ver importa que sejam apreciadas de mais perto, porque nos abrirão o caminho para o verdadeiro conceito da arte. Mas ainda, constituem o ponto de passagem para o conceito. Com este propósito, põe-se a questão de saber se o ensino moral, considerado como fim supremo de arte, deve estar contido implicitamente, sem ser formulado como ensino, ou se deve ser enunciado de um modo explícito. O que, em primeiro lugar, nos dizem é que a obra de arte tem de compreender, implicitamente, um ensino moral, que este ensino, como fim supremo que é da arte, deve encontrar-se nela num estado não desenvolvido, num estado em que se não realce, se não imponha como doutrina, lei, imperativo. Na generalidade, é admissível que uma boa moral se possa deduzir de uma representação concreta, da representação de um acontecimento. Depende tudo da interpretação, visto que, no caso da moral implícita, se trata de a desenvolver, de a classificar. É, todavia, duvidoso que se chegue assim a algum resultado positivo, porque, como acabamos de dizer, raros são os fatos ou as coisas dos quais se não possa extrair uma moral. Têm sido defendidas e desculpadas as mais imorais representações artísticas e obras literárias alegando que, para alcançar a moralidade, é preciso conhecer também o mal e o pecado, que, para conhecer o bem, é preciso saber qual o contrário do bem, e assim acreditou poder justificar-se a imoralidade na arte. Não impediram estes argumentos que se tenha dito que as representações de Maria Madalena, a bela pecadora, levaram ao pecado mais homens do que quantos arrependimentos provocaram; mas pode haver arrependimento sem ter havido pecado? A existência moral tem aqui um caráter demasiado geral, demasiado vago; também a história se pode fazer esta mesma exigência porque, digamo-lo mais uma vez, todas as representações que têm por objeto os assuntos e acontecimentos humanos são sempre suscetíveis de implicar uma moral.
Já o mesmo não acontece quando se diz que a moral deve estar representada explicitamente na obra artística, que deve exprimir um ensino, leis claras, ser uma fabula docet. É o caso das fábulas de Esopo. Cada fábula constitui, aí, um todo; só mais tarde, e de um modo desastrado, delas se extraiu, ou a elas se acrescentou uma moral, ho mytho deloi. já por si própria, a fábula é um ensinamento.
Considerando mais atentamente, trata-se, na verdade, da defesa do ponto de vista da lei, e é isso que temos de examinar. Por corresponder a moral, na vida humana, à verdade em geral, pretendeu-se que a moralidade constituísse um aspecto essencial da arte. E a verdade é lei da vontade e da consciência. Há, de um lado, a lei, há, do outro lado, as tendências, sentimentos e paixões, e entre estes e aquele situa-se o ponto de vista moral que obriga o homem a reconhecer e acatar a lei para combater e dominar as paixões, a reconhecer e ter presente, sempre que age, o dever para repelir os interesses egoístas.
Segundo tal concepção, o homem moral teria consciência do dever, da lei, universal que subordinaria as suas decisões e que seria arvorado em sua máxima. Decidir-se-ia de acordo com o dever, como dever, em nome da lei geral, da máxima que seria a razão determinante dos seus atos. A lei, o dever, o dever pelo dever, é o universal, o abstrato que tem, na natureza, a contrapartida nos sentimentos naturais, nas inclinações, na verdade natural, no coração na alma. O homem seria o que o dever e o direito são; o que fizesse, fá-lo-ia refletidamente e convicto. Sujeito é aquele que escolhe; ao escolher o bem utilizá-lo-ia contra as suas tendências e os seus interesses subjetivos. Graças a este ponto de vista, encontra-se formulada a oposição da vontade, no que tem de completamente geral, com a vontade particular, natural, oposição que é estabelecida de modo a indicar que a ação moral deve combater permanentemente a vontade natural, que o moral, até por sua essência, é uma luta travada para dominar, para vencer decisivamente o natural. Deriva, pois, do ponto de vista moral, esta oposição que não deve conceber-se na referida e limitada forma, mas sim do modo mais compreensivo e geral. A lei e o imperativo devem ser concebidos como o Abstrato, como produto do intelecto, como aquilo que na vida corrente se chama o conceito em geral, como o Abstrato oposto à plenitude da alma e da generalidade da natureza.
Só no homem e no espírito humano esta posição reveste a forma de um mundo cindido, separado em dois: de um lado, o mundo verdadeiro e terno das determinações autônomas, do outro lado, a natureza, as inclinações naturais, o mundo dos sentimentos, dos instintos, dos interesses pessoais e subjetivos. De um lado deparamos com o homem sujeito à realidade vulgar e à temporalidade terrestre, atormentado pelas exigências e tristes necessidades da vida, amarrado à matéria, atrás de fins e prazeres sensíveis, vencido e arrastado por tendências e paixões; do outro lado, vemo-lo a elevar-se até as idéias eternas, até o reino dos pensamentos e da liberdade, a sujeitar a vontade às leis e determinações gerais, a despojar o mundo de realidade viva e florescente para o resolver em abstrações, condição esta do espírito que só afirma o seu direito e a sua liberdade quando domina impiedosamente a natureza, como se quisesse vingar as misérias e violências que ela o obriga a suportar.
Quando esta oposição adquire caráter suficientemente nítido, o espírito oscila entre os dois termos, inclinando-se sem cessar de um para o outro: do dever para o sentimento, da liberdade para a necessidade. Enquanto o homem só obedece à vontade própria, a liberdade só realiza os fins próprios: e só realiza a necessidade quando o homem se abandona às exigências naturais, as das circunstâncias, do coração e dos sentimentos. Mas nem sequer a liberdade escapa à leis, havendo leis para a liberdade como há para a necessidade, pelo que deparamos com uma oposição entre o geral e o particular. Esteja, embora, o particular implicado no universal que não é inteiramente determinado por ele. O particular tem determinações próprias que podem corresponder ou não ao universal. Ainda há, além disso, a oposição entre o concreto e o abstrato. Assim se erguem, um perante o outro, os campos hostis do pensamento e da realidade da vida subjetiva e do conceito frio, da teoria e da experiência. E assim o ponto de vista moral comporta essencialmente uma oposição, uma contradição entre o espírito e a carne; mas não se limita ele a esta oposição e é, como vamos ver, mais vasto e mais geral.
Essa oposição não é o produto de uma reflexão requintada ou de uma filosofia escolástica. Sempre ela preocupou e perturbou, sob formas diversas, a consciência humana, embora seja por influência da cultura moderna que reveste,a expressão particularmente aguda. É a cultura dos nossos dias, é a inteligência moderna que a tornam especialmente sensível ao homem, espécie de anfíbio vivendo em dois mundos contraditórios, entre os quais a consciência sem cessar hesita, incapaz de se fixar numa decisão que a satisfaça. Mas, depois de terem levado ao extremo aquela duplicidade, a cultura e a inteligência modernas postulam a necessidade de uma conciliação. Ora, não podendo a inteligência, o intelecto vencer a fixidez dos contrários, a conciliação destes permanece para a consciência um simples dever-se, enquanto a nossa realidade presente contínua a viver na inquietude da alternativa, procurando uma solução que não consegue encontrar. Resta, pois, saber se uma oposição assim tão vasta e profunda, cuja necessidade de conciliação ainda se mantém no estado de simples postulado, constitui a verdade em si e é suscetível de ser considerada como o fim supremo da arte.
Todavia, está o homem interessado em que aquela oposição se resolva, em que se realize uma conciliação entre os dois termos dela pela descoberta de um terceiro, de um princípio superior que represente a harmoniosa unidade. Nos nossos dias, a oposição é sentida de um modo particularmente vivo e preocupa os homens de múltiplas maneiras. O pensamento não cessa de a avivar, e é o intelecto, com o seu dever erguido contra a realidade, que a mantém para a inquietação do homem que está como que sacudido por todos os lados. Uma vez mais: o homem importa que esta oposição desapareça, que ela ceda lugar a uma conciliação, que se descubra um ponto de encontro, um princípio mais elevado, mais profundo, suscetível de alcançar a harmonia entre os dois termos aparentemente inconciliáveis.
É missão da filosofia, sua principal missão, suprimir as oposições pelo menos na medida em que elas revestirem as formas que acabamos de descrever e caracterizar, e mostrar que os termos opostos não são, na realidade, tão intransigentes e irresolúveis como parecem, que a única verdade enunciável a propósito de cada um é que ela não é verdadeiro em si e que a verdade de ambos só resultará da mútua conciliação, união ou harmonia. De um lado, há a liberdade, do outro, a necessidade. A liberdade é essencialmente um atributo do espírito; a necessidade é a lei da vontade natural. Mantém o intelecto a oposição entre as duas, e a liberdade só existe enquanto adversários do seu contrário. Mas firmemente acredita o homem que a posição será resolvida, e, quanto à inteligência, é missão da filosofia mostrar-lhe que, se a contradição existe, já é, tal como é resolvida de toda a eternidade, em si e para si. Porque a verdade é esta: a oposição é tal que não só é possível resolvê-la, que não só será resolvida num futuro próximo ou longínquo, como também a resolução já existe, a conciliação dos dois termos já está realizada, e só a inteligência procura ainda, na filosofia, a resolução. Mostra a filosofia que a conciliação se efetua a eternidade; todavia, para a inteligência ela só pode efetuar-se pela filosofia.
Hegel
Ed. Nova Cultural