quarta-feira, 2 de julho de 2014

Decepção e conflito. Síntese da distinção

Na esfera mais dos atos quee admitem diferenças de intenção e de preenchimento, ao lado desse último encontramos a decepção, a título de um contrário que o exclui. As expressões geralmente negativas, que de habito servem para designá-lo, como até mesmo, por exemplo, a expressão não preenchimento, não remetem a uma mera privação de preenchimento, mas a um novo fato descritivo, a uma forma de síntese tão específica quanto o próprio preenchimento. Isso vale para todos os casos, portanto, também para a esfera mais restrita das intenções de significação, na sua relação às intenções intuitivas. A síntese do conhecimento era a consciência de uma certa 'concordância'. Mas, à concordância corresponde, como possibilidade correlata, a 'discordância', o 'conflito'. A intuição não 'concorda' com a intenção de significação, mas 'conflita' com ela. O conflito 'separa', mas a vivência do conflito põe em relação e em unidade, é uma forma de síntese. Na medida em que a síntese anterior foi da espécie de uma identificação, a de agora é da espécie de uma diferenciação (infelizmente, não dispomos aqui de um outro nome positivo). - Esta 'diferenciação' não deve ser confudida com aquela que opõe à comparação. As oposições entre 'identificação e diferenciação' e 'comparação e diferenciação' não são do mesmo tipo. Outrossim, é óbvio que o uso de expressões semelhantes se explica por um estreito parentesco fenomenológico. - Na 'diferenciação' aqui em causa, o objetivo do ato de decepção aparece como 'não o mesmo', como 'diferente' do 'objetivo' do ato intencionante. Entretanto, essas expressões remetem as esferas mais gerais de casos do que as esolhidas até agora. Não apenas as intenções significativas, mas também as intuitivas se preenchem à maneira da identificação e sofrem decepção à maneira do conflito. O problema da delimitação natural da classe global de atos à qual pertence o 'mesmo' e o 'diferente' (podemos dizer igualmente: o é e o 'não é') será submetido, dentro em breve, a uma apreciação mais exata.

Essas duas sínteses não são, todavia, completamente paralelas. Todo conflito pressupõe algo que dirija a intenção para o objeto do ato conflitante e, em última análise, só uma síntese de preenchimento é que lhe pode dar essa direção. O conflito pressupõe como que um certo terreno de concordância. Se penso 'A é vermelho', quando na 'verdade', ele se mostra 'verde', nesse mostrar-se, isto é, no ajustamento à intuição, a intenção do vermelho conflita com a intuição do verde. Mas, é inegável que tal coisa só é possível quando tem por fundamento uma identificação do 'A' nos atos de significação e de intuição. É só assim que a intenção pode aproximar-se dessa intuição. A intenção global se dirige para um 'A' que é vermelho e a intuição mostra um 'A' que é verde. Só na medida em que a significação e a intenção se recobrem, com respeito à direção para um mesmo A, é que os momentos intencionais, dados unitariamente dos dois lados, entram em conflito, o presumido vermelho (que é presumido como o vermelho do A) não concorda com o verde intuído. Os momentos que não chegaram ao recobrimento só se correspondem através da relação de identidade; em vez de se 'ligarem' pelo preenchimento, eles se 'separam' pelo conflito, a intenção é remetida àquilo que, na intuição, é coordenado ao conflito, sendo repelida entretanto por esse algo.

O que expusemos aqui, referindo-nos especialmente às intenções de significação e às decepcões que elas sofrem, valem obviamente para toda a classe de intenções objetivantes a que aludimos anteriormente. Por conseguinte, poderemos dizer de modo geral: uma intenção só sofre decepção à maneira de um conflito, na medida em que faz parte de uma intenção mais abrangente, cuja parte complementar se preenche. No caso de atos simples ou isolados, não se pode, falar em conflito.

Edmund Husserl