domingo, 22 de setembro de 2013

O talento e o gênio

A esta atividade criadora da fantasia, com a qual o artista, consegue dar forma real ao que é racional em si, como se este racional fizesse parte de si mesmo, é que se chama gênio, talento etc.

Aludimos, anteriormente, às características do gênio. Gênio é aquele que tem o poder geral da criação artística bem como a energia necessária para exercer tal poder com o máximo de eficácia. Tal poder e tal energia são, porém, essencialmente subjetivos, pois a produção espiritual só pode existir num sujeito consciente do que quer, dos fins que se propõe, da obra que pretende realizar. Todavia, na realidade distingue-se em geral o talento do gênio, e é fundada essa distinção, pois não existe entre eles uma identidade direta, embora ela venha a ser exigida para que a criação artística resulte perfeita. É que a arte, enquanto individualiza as suas concepções e lhes dá uma expressão concreta, delas faz fenômenos, por assim dizer, reais, exigindo faculdades que variam com a natureza da realização. Tal pessoa tem talento como violonista, por exemplo, esta outra como cantor etc. Quem não possui mais do que talento só pode obter resultados apreciáveis confinando-se num ramo especial da arte. Mas, para realizar a perfeição em si própria, é preciso ter dons para a generalidade da arte e sentir dentro de si a inspiração que só o gênio possui. O talento sem o gênio não ultrapassa, por isso, os limites da habilidade puramente exterior.

O gênio e o talento, diz-se também, são inatos ao homem. Verdadeira em certo aspecto, falsa é, noutro aspecto, esta opinião. Com efeito, também se pode dizer que o homem, enquanto homem, nasceu para, por exemplo, ser religioso, para pensar, para cultivar a ciência etc., o que quer dizer que, enquanto homem, é capaz de se elevar até a ideia de Deus ou o conhecimento racional. Basta, para isso, ter nascido, ter recebido uma certa educação e haver trabalhado com aplicação. O mesmo já não acontece com a arte, que exige disposições específicas, essencialmente naturais. Assim como a beleza é a ideia na sua realização sensível e real e a obra de arte torna diretamente perceptível à vista e ao ouvido o que seja concepção espiritual ou do espírito provenha, assim também o artista, não se limitando a revestir as suas produções da forma puramente espiritual do pensamento, jamais abandona o domínio da imaginação e da sensibilidade e jamais esquece que é o mundo sensível que lhe fornece a matéria com que pode realizar a sua obra. Esta criação artística, a arte em geral, tem, pois, uma parte direta e natural que não é a obra do próprio sujeito, pois já ele a encontra pré-formada em si mesmo. Neste sentido se poderia falar da identidade do talento e do gênio.

No mesmo se dirá ainda que as diferentes artes dependem do gênio racional e das naturais disposições de um povo. Os italianos, por exemplo, possuem o dom natural do canto e da melodia, mas já nos povos nórdicos a música e a ópera, embora hajam sido cultivadas com êxito, não constituem um produto do gênio nacional tal como as suas terras não se prestam para o cultivo das laranjeiras. Aos poemas épicos souberam os gregos dar uma forma magnífica bem como atingiram a perfeição na escultura; já os romanos não possuíram uma arte própria e limitaram-se a transplantar a arte grega para o seu país. De um modo geral, é a poesia a mais cultivada de todas as artes, porque emprega materiais sensíveis de menores exigências e relativamente fáceis de trabalhar. Dentro da poesia, são os cantos populares que, sobre os demais gêneros, possuem um caráter nacional e natural; por isso os cantos populares surgem até em épocas de civilização relativamente primitiva e possuem um caráter nacional e natural; por isso os cantos populares surgem até em épocas de civilização relativamente primitiva e possuem um caráter de natural ingenuidade. Goethe, por exemplo, criou obras de arte em todas as formas e gêneros poéticos, mas é nos primeiro Lieder que se acham as criações mais intimas e espontâneas, que não são incompatíveis com um grau de civilização pouco desenvolvido. Os gregos modernos continuam a ser um povo de rapsodos e de poetas. O que quer que aconteça hoje ou tenha acontecido outrora, quer se trate de um acidente mortal ou das circunstâncias em que ele se produziu, de um enterro, de uma aventura, de um caso de represálias turcas, tudo é para os gregos pretexto de uma canção, e muitas vezes chegou a acontecer que, no mesmo dia de uma batalha, já estava pronta uma canção para celebrar a vitória que se viria alcançar. Fauriel, por exemplo, publicou uma coletânea de canções neogregas ouvidas da boca de mulheres, de amas, de criados que se mostravam estupefatas com o interesse suscitado por essas canções. Pode-se, assim falar de um nexo entre a arte e, por um lado, o seu modo de produção, por outro lado, o gênio nacional de um povo. Na Itália, por exemplo, os improvisadores são particularmente numerosos e dotados de um talento por vezes extraordinário. Ainda em nossos dias, italianos há capazes de improvisarem uma peça em dois atos na qual nada existirá de aprendido e onde tudo provém do conhecimento das paixões e situações humanas bem como de uma profunda inspiração de momento. É conhecida a história de um pobre improvisador que, depois de improvisar durante muito tempo, deu a volta à assistência para arrebanhar algumas moedas no velho chapéu esburacado; mas, dominado ainda pelo fogo da inspiração, não parou de declamar, de gesticular com os braços e as mãos até cair por terra inanimado, espalhando no chão as moedas que conseguira recolher.

O que, em terceiro lugar, caracteriza o gênio, na medida em que possui um caráter natural, é a facilidade da produção interior e o engenho técnico de que dá provas em algumas artes. Quando se trata, por exemplo, de um poeta, fala-se muito das dificuldades da métrica e da rima, e quando se trata de um pintor são lembrados os obstáculos que o desenho, o domínio das cores, a sombra e a luz levantam à invenção e à execução. Todavia, qualquer que ela seja, a arte exige sempre, e em todos os casos, longos estudos, constante aplicação, muito grande saber; mas quanto mais ricos e vastos forem o talento e o gênio, menor esforços se terão de fazer para adquirir a facilidade de que a produção carece. O verdadeiro pintor é impelido por uma natural tendência e por uma exigência direta a dar forma e cor a tudo quanto sente e lhe surge na representação. È a sua maneira de sentir e de conceber que sem esforço encontra dentro de si, como se se tratasse de um órgão que utilizasse para se exprimir. Um músico, por exemplo, só pode exprimir em melodias o que se move nas profundidades da sua alma; tudo quanto sente tornar-se-lhe logo melodia. Com o pintor, tudo se torna forma e cor, e o poeta exprime as suas representações em harmoniosas palavras e combinações de palavras. Não se trata apenas de uma representação teórica, de uma maneira de imaginar e sentir, mas de um sentimento ou disposição puramente práticos, dê um dom de execução real. No verdadeiro artista, há a coexistência daquela representação teórica e deste dom de execução real. O que agita na sua fantasia passa-lhe aos dedos, como nós enunciamos com a boca aquilo que pensamos, ou como os nossos mais íntimos pensamentos, representações e sentimentos se manifestam diretamente nas nossas atitudes e gestos. Depressa o verdadeiro gênio se torna mestre da técnica exterior da sua arte e aprende a dominar os materiais mais pobres e aparentemente mais impróprios para encarnar e representar as criações íntimas da fantasia. Este domínio exige, decerto, um prolongado exercício, mas o dom de execução direta deverá ser inato, pois uma simples facilidade adquirida pelo exercício jamais permitirá realizar uma obra de arte autêntica. Os dois aspectos, o da produção interna e o da sua realização são, de acordo com o conceito de arte, inseparáveis.

G.W.F.Hegel
Estética - O Belo Artístico ou o Ideal
Ed . Nova Cultural