domingo, 15 de setembro de 2013

A Arquitetura como ciência

" ...os maiores produtos da arquitetura são menos obras individuais do que obras sociais; antes o parto dos povos em trabalho do que o impulso de homens geniais; o depósito que uma nação deixa; os acúmulos que os séculos fazem; o resíduo das evaporações sucessivas da sociedade humana; numa palavra, espécie de formações."
— Victor Hugo

Em sua obra de 1816 consagrada aos monumentos da França, Alexandre de Laborde louvava, como Quartremère de Quincy, os artistas do fim do século XVIII e início do XIX por terem ido a Roma estudas e assimilar os princípios imutáveis dos estudos superiores, percorrendo assim os grandes caminhos da antiguidade. Os arquitetos da nova escola apresentavam-se como estudiosos atentos aos fatos concretos da sua ciência: a arquitetura. Esta percorria, pois, um caminho seguro, pois seus mestres estavam preocupados em estabelecer uma lógica da arquitetura baseada em princípios essenciais. "Eles são ao mesmo tempo artistas e estudiosos; adquiriram o hábito da observação e da crítica..."

Mas escapava a Laborde e a seus contemporâneos o que, em suas linhas mestras, era o caráter fundamental desses estudos e que consistia numa abertura sua para os problemas urbanos e para as ciências humanas, abertura que frequentemente fazia a balança pender mais para o lado do estudioso do que para o do arquiteto. Somente uma história da arquitetura baseada nos fatos poderia nos proporcionar um panorama global desse difícil equilíbrio e permitir-nos um conhecimento mais articulado dos próprios fatos.

Mas nossas condições permitem-nos desde já indicar, como problema de fundo de tratados e do ensino, o da elaboração de um princípio geral da arquitetura, a arquitetura como ciência, e o da aplicação e da formulação dos edifícios. Ledoux estabelece os princípios da arquitetura segundo a concepção clássica, mas depois se preocupa com os lugares e com os acontecimentos, com os sítios e com a sociedade. Assim, estuda todos os edifícios que a sociedade requer estabelecidos com condições precisas de contorno.

Também para Viollet-le-Duc a resposta da arquitetura enquanto ciência é necessariamente unívoca: diante de um problema, há uma solução. Mas, e aqui ele desenvolve sua análise, os problemas colocados à arquitetura mudam continuamente, modificando as conclusões. Princípios da arquitetura e modificações do real constituem a estrutura da criação humana, segundo a primeira definição do mestre francês. Assim, no Dicionário Sistemático da Arquitetura francesa, é apresentado como eficácia ímpar o grande afresco da arquitetura gótica na França.

Conheço poucas descrições tão completas e persuasivas das obras arquitetônicas quanto a do Castelo Gaillard; o castelo, fortaleza de Ricardo Coração de Leão, adquire na prosa de Viollet-le-Duc a força de uma imagem permanente da estrutura das obras arquitetônicas; e a estrutura e a individualidade do castelo revelam-se progressivamente, da análise do edifício à geografia do Sena, do estudo da arte militar e dos conhecimentos topográficos da antiguidade até apreender a própria psicologia dos dois condottieri rivais, o normando francês; atrás deles, está a história da França, de que adquirimos um conhecimento e uma experiência pessoal.

Assim, o estudo da casa parte de classificações geográficas e de considerações sociológicas para chegar, através da arquitetura, à estrutura da cidade e do país: a criação humana. Villet-le-Duc descobre que, na arquitetura, a casa é o que melhor caracteriza os costumes, os usos, os gostos de uma população; tanto sua estrutura quanto suas características distributivas só se modificam em tempos muito longos. A partir do estudo das planimetrias das casas de habitação, ele reconstrói a formação dos núcleos urbanos e pode indicar a orientação de um estudo comparado da tipologia da casa francesa.

Com o mesmo princípio descreve as cidades construídas ex novo pelos reis da França. Montpazier não só é alinhado com regularidade; também todas as casas são de igual dimensão e apresentam a mesma distribuição. As pessoas que residiam nessas cidades privilegiadas encontravam-se num plano de absoluta igualdade. O estudo dos lotes e dos quarteirões urbanos faz Viollet-le-Duc entrever uma história das classes sociais na França, extraída do concreto da história, antecipando a geografia social e as conclusões de Tricart.

É necessário ler os melhores textos da escola francesa de geografia, que se desenvolveu no início deste século, para encontrar uma atitude científica semelhante, mesmo a literatura mais superficial do ensaio de Albert Demangeon sobre a casa rural na França evoca os escritos do grande tratadista. Partindo da descrição da paisagem artificial do campo, Demangeon vê na residência o elemento persistente que se modifica em tempos longos e cuja evolução é mais longa e mais complexa do que a da economia rural, a que nem sempre e facilmente corresponde; assim, ele enfoca a questão das constantes tipológicas na habitação tratando de procurar os tipos elementares da habitação.

Enfim, a habitação extraída do ambiente local, demonstra não ser derivada desse ambiente apenas, mas apresenta relações externas, parentescos distantes, reflexos gerais. Portanto, na repartição geográfica de um tipo de habitação, muitas observações fogem ao determinismo local, seja este relativo aos materiais, seja às estruturas econômicas ou às funções; e se delineiam as relações históricas e as correntes culturais.

A análise de Demangeon detém-se necessariamente diante de uma concepção mais vasta da estrutura da cidade e do território, que havia sido, porém, entrevista de forma global pelos tratadistas, com respeito aos estudos de Viollet-le-Duc, ela ganhou em precisão e em rigor metodológico o que perdeu na compreensão geral.

É significativo, tanto quanto inesperado, que caiba a um arquiteto considerado totalmente revolucionário retomar os temas aparentemente distantes dessas análises, para repropô-los numa síntese unitária. Na definição de casa como máquina e de arquitetura como utensílio, tão escandalosa para os cultores estetizantes da arte, Le Corbusier apenas faz seu todo o ensinamento positivo da escola francesa, baseada no estudo do real. De fato, nos mesmos anos, no ensaio citado, Demangeon fala da casa rural como de um utensílio forjado para o trabalho do camponês. A criação humana e o utensílio forjado parecem, pois, encerrar os fios desse discurso numa visão da arquitetura baseada no concreto, através de uma visão totalizante que talvez constitua a contribuição do artista.

Mas creio que uma conclusão desse gênero acabaria encerrando o discurso sem ter estabelecido um progresso, se confiasse à personalidade isolada, e não a um progresso da arquitetura como ciência, a solução das relações entre análise e projeto, negando aquela esperança contida na observação de Laborde, que via na nova geração homens de arte e de cultura que haviam adquirido o costume da crítica e da observação; em outras palavras, que via a possibilidade de um entendimento mais profundo da estrutura da cidade. Creio, pois, que apenas uma meditação mais profunda sobre o objeto da arquitetura, tal como esta foi continuamente entendida — a criação humana —, é capaz de levar adiante a análise e a proposta.

Mas essa meditação deve se estender necessariamente a toda a estrutura que compreende a relação entre obra individual e social, o depósito dos séculos, a evolução e a permanências das diversas culturas. Sem deleite literário, pois, mas de acordo com o desejo de uma análise mais complexa, este parágrafo começa com um trecho de Victor Hugo que pode ser um programa de estudo. Na paixão muitas vezes enfática pela grande arquitetura nacional do passado, Victor Hugo, como tantos outros artistas e cientistas, procurou compreender a estrutura da cena fixa da vicissitude humana. E quando nos indica a arquitetura e a cidade em seu aspecto coletivo e como "espécies de formação", enriquece a busca de uma referência tão autorizada quanto sugestiva.
A Arquitetura da Cidade
Aldo Rossi
Ed. Martins Fontes