domingo, 12 de agosto de 2012

O movimento e a interpretação no espaço barroco

Michelangelo não iniciou o período barroco, como ainda repete tantos manuais de historia da arte. Ele concretiza o drama da metade do século XVI, que pretende mover a cerrada espacialidade estática, que combate sem a infringir. A relação existente entre Vignola, Michelangelo e Borromini não é diferente da relação que distingue o Panteão, a Minerva Medica e Santa Costanza. A minerva Medica representava a laceração romântica do espaço fechado de Roma; Michelangelo, a agitação interior do invólucro mural do século XVI. A entrada Laurenziana de Florença, onde as colunatas gigantes já não se inserem repousadamente na parede e no volume, mas são o símbolo plástico de uma necessidade de os fragmentar — de alargar, de abrir e de romper — onde a própria escadaria irrompe e domina no pequeno ambiente como se quisesse transmitir em sua estereometria estática um grito de revolta, é o arquétipo da obra de Michelangelo. Mas, como o arquiteto da Minerva Medica não podia criar a nova espacialidade cristã e teve de limitar-se a corroer as paredes que encerravam o espaço antigo, assim Michelangelo escultor não pôde abandonar o espaço quinhentista em nome de um novo tema, mas o alterou, subverteu-lhe, no maior drama da história arquitetônica, os volumes e as paredes. Colocado em crise o invólucro mural, o artista deteve-se, mas havia aberto caminho ao espaço barroco.

O barroco é libertação espacial, é libertação mental das regras tratadistas, das convenções, da geometria elementar e da estaticidade, é libertação da simetria e da antítese entre espaços interior. Por essa sua vontade de libertação, o barroco assume um significado psicológico que transcende o da arquitetura dos séculos XVII e XVIII, para significar um estado de espírito de liberdade, uma atitude criativa liberta de preconceitos intelectuais e formais, que é comum a mais de um momento da história da arte; prova disso é o fato de se falar de barroco helenístico, de barroco romano na época em que os arquitetos do Baixo Império sentem a necessidade de colocar em crise a solidez estática do espaço fechado de Roma, e fala-se mesmo de barroco moderno quando a tendência da arquitetura orgânica pronuncia sua declaração de independência das fórmulas e dos esquemas funcionalistas.

Naturalmente nós não utilizamos a palavra neste sentido genérico de revolta moral (neste caso, o barroco correria o risco de se identificar com o romantismo), mas no propriamente arquitetônico, isto é, espacial. E é claro que as características que qualificam o espaço nos séculos XVII e XVIII não podem ser encontradas nos outros períodos, considerados barrocos por inferência ilegítima.

A secular oposição crítica ao barroco nunca foi baseada em Bernini e na sua escola. O fato de, ao invólucro fechado, ao edifício-fortaleza de Palazzo Farnese suceder o Palazzo Barberini aberto e convidativo com suas ilusões de perspectiva e seus grandes vitrais; o fato de, após os esquemas cêntricos do século XVI, austeros na auto insuficiência formal, a colunata de S. Pedro abrir os braços para receber multidões de fiéis; mesmo a preferência pelos elementos cenográficos, os dados naturalistas que entram no edifício, os motivos escultóreos e arquitetônicos que inundam os parques das grandes vivendas e, portanto, a união estreita e polifônica entre os espaços exteriores e os interiores: tudo isso não irritou ninguém, mesmo porque Palladino, que o classicismo escolástico deificava em toda a Europa, fora um gênio por demais livre para ater-se às regras de um jogo que, culturalmente, tinha contribuído para difundir.

A crítica e o público nunca levaram a fundo o seu protesto contra a dialetização e libertação do espaço quinhentista operada por essa escola berniniana  que substancialmente respeitava o sentido do classicismo espacial, ainda que movendo e alongando seus fatores. Substituir uma elipse por um círculo, a despeito de aquela ser uma forma mais dinâmica, em Sant’Andrea no Quirinale, de Bernini, nunca causou muitos incômodos, uma vez que ao redor dessa figura herética todos os elementos se organizavam segundo métodos quinhentistas. Ninguém jamais lançou, com profunda convicção, os seus anátemas contra um Pietro da Cortona, ou um Vanvitelli, contra  a fertilidade inventiva de tantos artistas menores que, com seus palácios, igrejas e fontes, levaram luz e esplendor às duras praças quinhentistas.

Onde por muito tempo a crítica, e ainda agora vastos setores da opinião pública, se detêm é exatamente quando o barroco não se limita a comentar com novo gosto esquemas antigos, mas cria uma nova concepção espacial, isto é, precisamente quando é maior. Borromini e Neumann: cruzaram-se as espadas sobre esses dois nomes máximos do barroco internacional. Ainda hoje, entender a arquitetura barroca não significa apenas libertar-se do conformismo classicista, aceitar a ousadia, a coragem , a fantasia, a mutabilidade, a intolerância dos cânones formalistas, a multiplicidade de efeitos cenográficos, a assimetria, o acordo orquestral de arquitetura, escultura, pintura, jardinagem, jogos de água, para criar uma expressão artística unitária — significa isso sem dúvida, ou seja, aceitar o gosto mas principalmente entender o espaço. Quer dizer, para nos limitarmos aos exemplos, a amar o San Carlino alle Quattro Fontane, o interior de Sant’Ivo ala Sapienza e o Vierzehnheiligen. Nesses monumentos sublimes triunfa o caráter de movimento e de interpenetração próprio do barroco, não só em termos de plástica arquitetônica, como de realidade espacial.

O movimento do espaço barroco nada tem em comum com o dinamismo gótico. Este vivia, do contraste entre duas diretrizes visuais e, bidimensionalmente, isto é, com relação ao invólucro arquitetônico, valia-se de indicações de perspectiva afirmadas através do jogo linear; mas o dinamismo barroco segue toda a experiência plástica e volumétrica do século XVI; recusa seus ideais, mas não os instrumentos. Uma linha gótica obriga a vista a deslizar sobre a superfície e por isso tira a solidez ao muro; no barroco, entretanto, todo o muro se ondula e dobra para criar um novo espaço. O movimento barroco não é conquista espacial, é um conquistar espacial na medida em que representa espaço, volumetria e elementos decorativos em ação. A cúpula de Sant’Ivo, de Borromini, com sua espiral ascendente, é o seu símbolo plástico.

Em termos espaciais, o movimento implica a negação absoluta de todas as nítidas e rítmicas divisões dos vazios em elementos geométricos, e a interpretação horizontal ou vertical de formas complexas, cuja essência prismática ou estereométrica se perde em contato com as formas vizinhas. Uma olhada na planta de San Carlino é suficiente para dizermos que forma tem: há um meio-oval ao lado da entrada, outro no vão absidal; depois, fragmentos de dois outros ovais nas capelas da direita e da esquerda. Esses quatro setores de figuras geométricas encontram-se, penetram uns nos outros numa composição planimétrica que já nada tem da nítida divisão ou da métrica eurrítmica da Renascença. E altimetricamente? Um quinhentista teria facilidade em distinguir o edifício da cúpula, contrapondo seus volumes; Borromini, no entanto, concebe unitariamente toa a visão espacial, compenetra a quinta elipse da cúpula na continuidade do ambiente inferior, e modela todo o invólucro mural de forma a acentuar e exasperar essa interpenetração de figuras espaciais com uma continuidade de tratamento plástico. Quanto à igreja de Neumann, começada em 1743, ela suprime a cúpula para não utilizar elementos estranho que desfocariam absorvendo seu dinamismo, o jogo das interpretações espaciais. Três ovais de dimensões diferentes sucedem-se sem solução de continuidade na nave, e a eles acrescentam-se dois círculos no que foi o transepto. Mas para tornar o espaço mais dramático, o ponto focal da igreja não está no cruzamento dos dois braços (como acontecia sob a cúpula), mas no meio do oval central, onde surge o altar dos Catorze Santos. E, como se isso não bastasse, existe também um fragmento de um segundo transepto em dois altares suplementares que unem espacialmente a primeira elipse à elipse principal. Todo conjunto é coberto por uma decoração espetacular e animado por efeitos de luz, até essa época nunca tão frequentemente utilizada como instrumento de insubstituível eficácia arquitetônica.

Para além dessas obras-primas está certamente o paradoxo, a permissão vazia, a teatralidade bombástica. No entanto, saber ver a arquitetura significa, surpreender o momento em que uma alma individual se move e supera com linguagem poética o mecanismo das regras sintáticas e semânticas, e, nos períodos de libertação, como o barroco, saber distinguir a verdadeira desordem da obra do gênio que, mesmo através de uma infinita multiplicação de imagens, encontra o momento de seu classicismo.

Saber ver a Arquitetura
Bruno Zevi
Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1996