domingo, 22 de abril de 2012

O estilo Gótico

O nome 'gótico' para o estilo da Alta Idade Média foi cunhado por Vasari, o mais importante autor de arte do período da Renascença. Em seus retrospectos da arte anterior ao seu tempo denominou-a desdenhosamente 'gótica', segundo o povo bárbaro dos Gôdos, no entender dos italianos os destruidores da beleza clássica. Naquela palavra estava contida toda a repulsa que a Itália daquele tempo sentia pela Idade Média e ao mesmo tempo a falta de disposição do sentimento de formas meridional de tomar contato com as criações setentrionais. Pois o gótico originou-se organicamente do românico do Norte. Não existe por isso mesmo qualquer nítido limite entre ambos. A definição do românico como 'estilo de arco romano' e do gótico como 'estilo ogival' seria por demais superficial e inexata.

Quem quiser aprofundar-se mais na essência do gótico deve ter presente a sucessiva reestratificação da civilização medieval. Ela começara nos conventos e o latim se tornara a língua culta comum do Ocidente. Durante longo tempo os religiosos, conhecedores da escrita, relutaram em profanar seus pergaminhos com a língua vulgar do povo, ao registrarem, por exemplo, o Juramento de Estraburgo, de Luís, o Germânico, de 842, ou as primeiras sentenças italianas e espanholas nos documentos monásticos após a passagem do milênio. Já aí se traem -- para empregar uma imagem -- as tensões no arco do mundo medieval que mais tarde deveriam descarregar-se de modo tão dramático, impelindo-a à extrema altura.

Se a arte romântica representara a unidade dentro da multiplicidade, ela só pode unir artisticamente a diversidade da cultura enquanto esta era sustentada unicamente pelas duas potências que se combatiam constantemente, mas apesar disso governavam em conjunto, isto é, o poder imperial profano com a consagração religiosa e o papismo religioso, com anseios de poder profano. Com o correr do tempo, porém, a igreja foi-se dividindo cada vez mais em duas instituições, a monacal e a clerical, cada uma com metas muito diferentes, e a soberania terrena foi entrando em crescente conflito com seus vassalos. Ao lado dessas forças viviam, em crescentes bandos e cada vez mais aguerridos e belicosos, os cavaleiros, burgueses e camponeses. Enquanto a sua fé, saturadas de idéias do Além, lhes incutia com insistência o temor divino e a fuga às coisas terrenas, predominavam freqüentemente na vida prática a crueldade selvagem, os instintos desenfreados e a mais brutal luta pela existência. Dante proclamou mais tarde em alta voz essa discórdia, já sentida antes dele por aqueles que, em grande número, renunciava ao mundo e se refugiavam num convento ou se transferiam para o mundo irreal do sonho e da poesia. Impávidos heróis, mulheres amorosas e santos de maravilhosas meiguice são os vultos sublimes, consoladores, a despeito de toda a fantasia sempre ligados a realidade e para os quais os filhos da terra erguiam os olhos cheios de admiração. Quanto mais o mundo imaginário monástico fora substituído por outro, cavalheiresco, tanto mais fora adquirindo uma nova fisionomia o culto da Virgem, que se difundia cada vez mais. Ante a veneração da corte a Mãe de Deus assumiu então nova posição, a de senhora adorada, tornou-se a Domina, a Madonna.

A mudança das formas que se impôs no estilo gótico correspondia a uma modificação em toda a cultura ocidental, desde os seus fundamentos. Aos solitários mosteiros e castelos românticos da nobreza protogótica seguiram-se cidades em constante crescimento. Nelas surgiu uma cidade completamente diversa de tudo quanto até então existira, de início unida pelos liames supernacionais do cristianismo. Do seio das povoações que se acumulavam em estreito, as catedrais góticas, criadas por mãos profanas, eram impelidas para o céu. Com muita eloquência nos falam as crônicas e documentos, narrando a respeito da religiosa avidez de glória e de ação que na época das Cruzadas arrebatava a nobreza e o povo miúdo, que em fervor sagrado arrastavam para a construção das novas catedrais pesadas cargas, ajudando nos serviços brutos, onde fosse possível.

Essa participação de todo o povo na arte explica o cunho secular que penetra no estilo gótico. Se a partir de então em vez da antiga folha de acanto aparecem nas decorações os cardos nativos, as folhas de carvalhos e de parreira, há nisso o mesmo pendor naturalista que pode ser observado também na literatura medieval. Assim como esta deu as legendas da Virgem, aos milagres e mistérios um cunho rude e pálpavel, nas artes plásticas avançou até os altares das igrejas onde, com frequência, um realismo terreno, cheio de vida, escorraçou as formas hieráticas estilizadas. Esse processo naturalmente não se realizou de uma só vez, mas em sucessivas vagas e em graus diversos que, no entanto, mal podiam modificar o quadro conjunto.

Assim como as mais perfeitas criações do estilo românico expressam a grande coesão sob os vínculos da autoridade, o gótico, em seu ponto culminante é a mais grandiosa síntese do pensar medieval mais avançado, contenda entre espírito e matéria, entre Deus e o Mundo. Se a época do iluminismo acreditava que a escolástica nada mais fora do que a tentativa ulterior de fazer o camelo da fé passar pelo fundo da agulha da razão, esquecia-se de que a escolástica não florescera depois da mística, mas ao mesmo tempo, exatamente como na catedral gótica o sistema engredado de seus esteios, contrafortes e arcobotantes transportava o mistério celeste do coro elevado ao deslumbramento de seu apogeu.

O templo grego, que repousa plano e sereno neste mundo e a catedral gótica que, sob um poderoso impulso se eleva para os céus, constituem a expressão de duas atitudes fundamentais perante o mundo, que sempre de novo através dos séculos e dos milênios estão atrás da arte e a modificam.

História Antiga e Medieval
José J. de A. Arruda