segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O Belo Artístico ou o Ideal : A inspiração

A atividade da fantasia e a correspondente exigência de execução técnica, consideradas como um estado de alma do artista, constituem aquilo que geralmente se chama inspiração.

A pergunta que desde logo se formula é a de saber como se produz a inspiração. A esta pergunta têm sido dadas variadas respostas.

Em primeiro lugar, considerando os estreitos laços que prendem o artista ao que provém do espírito e ao que à natureza pertence, julgou-se que a inspiração seria principalmente motivada por estímulos sensíveis. Mas o sangue quente não faz o artista e, por si só, o champanha não chega para provocar a produção de uma obra de arte. Não nos diz Marmontel que, com as seis mil garrafas que guardava na sua casa, jamais sentiu a inspiração poética? Do mesmo modo, poderá o mais belo artista estender-se de madrugada e ao anoitecer sobre a erva verde, gozar o fresco sopro da brisa e contemplar o céu, que isso não lhe trará a inspiração.

Se a não trazem os estímulos sensíveis, também não é a deliberada intenção de criar que concitará a inspiração. Aquele que apenas aguarda a inspiração para escrever uma poesia, para pintar um quadro ou para compor uma melodia, e, sem sentir em si o estímulo autêntico de um conteúdo, o procura aqui e além, esse será incapaz, por maior talento que possua, de alguma vez aprender uma bela concepção ou de realizar uma obra perfeita. Nem o estímulo sensível, nem a vontade e a decisão, são por si sós geradores da verdadeira inspiração, e os que recorrem a esses meios só mostram com isso que na sua alma e na sua fantasia não existe nenhum interesse autêntico. Pelo contrário, quando o artista obedece a uma tendência profunda que o obriga, contra todas as vontades, a exteriorizar-se e a exprimir-se, é porque já ligou o seu interesse a um objeto e a um conteúdo determinados e deles se não pode separar.

A verdadeira inspiração é a que é provocada por um conteúdo determinado que a fantasia apreende para lhe dar expressão artística. Confunde-se ela com aquele trabalho ativo de formação que se liga, por um lado, à intimidade subjetiva e, por outro lado, à execução objetiva. A inspiração é, com efeito, necessária a estas duas atividades. E pergunta-se, então, como é que um assunto se dá ao artista e lhe incendeia a inspiração. Também sobre isto as opiniões se dividem.

Por um lado, afirma-se que o artista deve encontrar em si mesmo os seus assuntos. É esse, rigorosamente, o caso do poeta 'que canta como as aves de ramagens'. Seu alegre descuido oferece-se-lhe como um conteúdo interior que, exteriorizado, goza. Então, ' o canto que lhe sai do peito é a sua generosa recompensa'.

Por outro lado, verifica-se que as grandes obras artísticas foram produzidas por motivos exteriores. Muitas das obras de Píndaro foram escritas por encomenda; muitos planos de edifícios e assuntos de quadros foram impostos aos artistas que, no entanto, não os deixaram de executar com o entusiasmo da inspiração. Mais do que isso: muitas vezes os artistas se queixam de que lhes faltam assuntos. Estes estímulos exteriores da produção constituem aquele elemento natural e imediato que entra na composição do talento e constitui, por assim dizer, a anunciação da inspiração. A atitude do artista é, então, a de um talento natural que se encontra em face de um assunto que existe já; um acontecimento exterior, uma ocasião oportuna - a leitura de lendas, de contos de baladas, de crônicas ( como no caso de Shakespeare) -,incitam-no a desenvolvê-lo e a servir-se dele para se exprimir. Do exterior apenas pode, pois, provir o estímulo da produção, e aquilo que ao artista cumpre dar, como única condição importante, é um interesse essencial, vivendo, dentro de si, o assunto. É então que surge a inspiração do gênio; e o artista verdadeiro e autêntico acha, na mesma vida que o anima, os estímulos de atividades e as fontes de inspiração diante dos quais os outros passam sem se aperceberem.

Se nos perguntamos agora em que consiste a inspiração artística como tal, será a seguinte a única resposta possível: consiste em estar obsediado pela coisa, em a ter sempre presente, em não encontrar repouso enquanto lhe não der uma forma estética e perfeita.

Ora, quando o artista assim estiver identificado com o objeto, deverá ter a sabedoria de esquecer a sua particularidade subjetiva, com tudo o que ela tem de contingente e acidental, para se embeber inteiramente do seu assunto; deve ser, por assim dizer, a forma que enforma o conteúdo de que o artista está possesso. Má inspiração é a inspiração que dá ao artista a liberdade de se lhe impor e se fazer valer, em vez de ser órgão da atividade criadora que se concentra sobre a coisa. Isto nos obriga a falar da objetividade nas criações artísticas. 

Hegel
ed. Nova Cultural