domingo, 12 de maio de 2013

A originalidade

A originalidade não consiste na observância das leis do estilo, mas na  inspiração subjetiva que, em vez de se formar de uma certa maneira para sempre utilizada, escolhe um assunto racional em si mesmo e o desenvolve escutando apenas a voz da subjetividade artística, assim obedecendo de igual modo, à natureza e conceito desta ou daquela arte particular e ao conceito geral do ideal.

Daí resulta confundir-se a originalidade com a verdadeira objetividade; reúne ela os aspectos subjetivo e objetivo da representação, de sorte que não há nenhum elemento que seja estranho a qualquer outro. Por outro lado, exprime ela o que de mais espontâneo existe no artista e, além disso, nada exprime que não esteja na própria natureza do objeto; assim, a originalidade do artista aparece como sendo a do próprio objeto, e ela tanto pertence, com efeito, ao objeto como à atividade criadora do sujeito.

Nada a originalidade tem, pois, de comum com a arbitrariedade e a subjetividade de meros achados, de quaisquer idéias que ocorram. Entende-se, geralmente, por originalidade a posse de certas singularidades de comportamento próprias a um determinado sujeito e que em nenhum outro se encontram. É essa uma péssima originalidade. Não há, neste sentido, povo mais original do que o inglês, pois cada inglês tem a sua mania que nenhum homem sensato gostará de imitar, e é impondo essa mania que pretende ser original.

A esta se liga uma outra originalidade, particularmente dominante nos nossos dias, que consiste em ter espírito e humor. O artista que utilize este gênero de humor parte sempre da sua própria subjetividade para sempre a ela voltar de novo, e assim o objeto da representação propriamente dito apenas serve de pretexto para o artista manifestar a sua verve, expandir-se em saídas, gracejos, palavras espirituosas e rever-se nos saltos da sua caprichosa fantasia. Mas dá-se, neste caso, uma separação entre o objeto e o artista: o objeto é tratado arbitrariamente porque o artista tem de manifestar, antes de tudo, a sua originalidade. Poderá, este humor, ter muito espírito e profundo sentimento, chega, geralmente, a produzir até uma forte impressão, mas no fundo, é muito mais ligeiro e superficial do que se julga. É que interromper a todo instante o decorrer lógico das coisas, começar, continuar e acabar ao sabor das variações caprichosas do humor, entregar-se a um fogo de artifício de ironias e sentimentos e assim produzir caricaturas da imaginação - tudo isso é um esforço muito mais fácil do que o de desenvolver e dar uma forma perfeita a um conjunto, no signo do verdadeiro ideal. O humor, nos nossos dias, compraz-se em acentuar os aspectos desagradáveis de um talento impertinente e facilmente cai na sensaboria e no absurdo. O verdadeiro humor é muito raro; hoje, porém, passam por engenhosas e profundas as trivialidades mais enfadonhas, por diminuto que seja o aspecto exterior e as pretensões que tenham ao humor. Até em Shakespeare, cujo humor, no entanto, é grande e profundo, se encontram muitas sensaborias. E o humor de Jean-Paul, se por um lado nos impressiona com a profundidade dos paradoxos e a beleza dos sentimentos, não deixa, por outro lado, de nos decepcionar com as rebuscadas associações que estabelece entre objetos que nada têm de comum e cujas relações, fabricadas pelo humor, nos escapam completamente. Nem o maior humorista se lembra das razões que o levaram a estabelecer tais relações e, por isso, ao examinarmos as associações de Jean-Paul, vemos bem que elas não foram criadas pela força do gênio e são puramente extrínsecas. Por isso ele se viu obrigado, para dispor de materiais sempre novos, a percorrer livros dos mais variados assuntos, de Direito, de Botânica, de viagens, de Filosofia etc., anotando o que mais o impressiona no decurso de tais leituras e acrescentando às notas as idéias que nesse momento lhe ocorriam; assim, ao chegar a hora da invenção, não hesitava em associar as coisas mais heterogêneas, como, por exemplo, a flora do Brasil com o antigo tribunal do Império. Isso era o que mais particularmente se aplaudia, como prova de originalidade ou, então, o que se desculpava dizendo que o humor autoriza tudo. Ora, a verdadeira originalidade é incompatível com a semelhante arbitrariedade.

É esta a ocasião de lembra o que dissemos sobre a ironia. Segundo os seus admiradores, a ironia possui o mais alto grau de originalidade por isso mesmo de a nada atribuir seriedade e de gracejar pelo gosto de gracejar. Por outro lado, reúne ela, nas suas representações, uma infinidade de minúcias cujo profundo sentido o poeta não exprime e oculta. A habilidade reside, precisamente, em declarar que essa mistura de pormenores constitui a poesia da poesia, visto que o que haja de mais profundo e perfeito permanece oculto, sem que possa ser expresso em virtude da sua imensa profundeza. Foi assim que, por exemplo, nas poesias de Frederico Schlegel, feitas no tempo em que ele se julgava em poeta, era o que ele não disse que, precisamente, se considerava o melhor, coisa que não evitou, no entanto, que esta poesia da poesia se revelasse como a mais enfadonha das prosas.

A verdadeira obra de arte, deve , pois, estar, depurada da falsa originalidade. A originalidade revela-se em ser a obra de arte criação própria de um espírito que não procura os elementos da sua obra no exterior para depois reunir de qualquer modo, mas que, por assim dizer, elabora de um só jato, e num só tom, um conjunto cujos elementos realizaram a sua inteira fusão nas profundidades do eu criador. Se, pelo contrário, as cenas e os motivos se reúnem, não por virtude de uma interior afinidade, mas por impulso exterior, isso só mostra que não existe uma íntima necessidade que justifique a sua união e que eles se acham ligados uns aos outros de modo acidental e por uma subjectividade estranha. O Goetz, de Goethe, por exemplo, foi particularmente admirado devido à sua originalidade e, como já lembramos, o próprio Goethe nesta obra calcou aos pés todas as leis artísticas formuladas pelas teorias estéticas então dominantes; todavia, à realização desta obra falta a verdadeira originalidade. Caracteriza-a a ausência de elementos pessoais. Cenas inteiras e muitos dos aspectos, em vez de serem produto da elaboração espontânea e livre, trazem marcados os interesses da época em que a obra foi escrita e estão ligados entre si por laços puramente exteriores. A cena, por exemplo, que põe Goetz em presença de Frei Martinho, que se considera representar Lutero, só contém idéias que Goethe recebeu da sua época, quando na Alemanha de novo recomeçaram as queixas contra os frades, acusados de se embriagarem, de terem digestões que os mergulhavam na sonolência, de cederem às tentações, de renunciarem aos insuportáveis votos de pobreza, castidade e humildade. Por outro lado, a vida cavaleiresca de Goetz e a narrativa das suas aventuras entusiasmam Frei Martinho.

Ora, não foi com idéias tão profanas que Lutero iniciou a sua campanha; antes, monge piedoso, de Santo Agostinho recebeu profundas concepções e convicções religiosas. Do mesmo modo se encontram, noutras cenas, alusões às teorias pedagógicas da época, sobretudo às de Basedow e seus discípulos. Segundo, estas teorias, ensinam-se às crianças muitas matérias que elas eram incapazes de compreender, e o verdadeiro método consistiria em ensinar-lhes coisas reais mediante a observação e a experiência. Karl, por exemplo, recita de cor, como se fazia no tempo da juventude de Goethe: "Jaxthausen é uma aldeia e um castelo, situada junto do Jaxt, que há duzentos anos pertence, como propriedade inalienável e hereditária, aos senhores de Berlichingen". E quando Goetz lhe pergunta: "Conheces o senhor de Berlichigen?", o rapaz olha-o desnorteado, sem saber que responder, pois a sua ciência era tal que não conhecia o próprio pai. Goetz assevera, então, que conhecia todos os atalhos, caminhos e passagens antes de saber os nomes da aldeia, do rio e da vila. A obra está assim sobrecarregada de intermédios sem relação com o assunto propriamente dito; e quando este devia ser expresso com toda a profundidade necessária, como por exemplo no diálogo entre Goetz e Weisslingen, deparamos com reflexões frias e prosaicas sobre os acontecimentos da época.

Sobreposição análoga de assuntos isolados sem relação com o conteúdo, encontramo-la até nas 'Afinidades Efetivas'; assim acontece com a descrição dos parques, os quadros vivos, as oscilações pendulares, a sensibilidade para os metais, as dores de cabeça e todo o quadro das afinidades que pertencem à Química. Num romance em que a ação decorre numa época prosaica, é decerto permitido proceder assim, sobretudo quando se procede com a habilidade e a elegância de Goethe. Mas não esqueçamos que, se  uma obra de arte não pode alhear-se completamente das tendências e da cultura do seu tempo, refletir esta civilização é uma coisa, e procurar e reunir materiais colhidos no que é extrínseco, sem relações com o conteúdo propriamente dito da representação, é outra. A verdadeira originalidade do artista, e da obra de arte, consiste na racionalidade do conteúdo verdadeiro em si próprio, racionalidade que anima o artista como a sua obra. Quando o artista faz sua esta razão, objetiva, sem a alterar com a mistura de elementos alheios, de proveniência interior ou exterior, só então exprime no objeto representado a sua mais autêntica subjetividade, que é onde se elabora e realiza a obra.

Em todo o pensamento e em todo o ato conformes com a verdade, a verdadeira liberdade consiste em permitir que o que há de substancial se afirme como um poder em si que não tarda, aliás, em tornar-se o poder próprio do pensamento e da vontade subjetivos com os quais se vem a confundir para formar uma unidade.

Assim, a originalidade da arte nutre-se de todas as particularidades que se lhe oferecem, mas só as absorve para que o artista possa obedecer ao impulso do seu gênio inspirado pela concepção da obra a realiza, e, em vez de seguir os caprichos e os interesses de momento, encarnar o seu verdadeiro eu na obra realizada segunda a verdade.

Não possuir maneira própria foi sempre a única grande maneira e foi porque assim procederam que Homero, Sofócles, Rafael, Shakespeare, podem ser considerados como originais.

G.W.F. Hegel
Estética - O Belo Artístico ou o Ideal
Ed. Nova Cultural