quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Anita Malfatti - A Festa da Cor

Cinco anos em Paris
Os vibrantes anos 20 foram tempos de pós-guerra, retomada e muita animação. Foi como se todos de repente tivessem combinados ir juntos a Paris, para uma grande festa, para comemorar. Teatros, boates, cafés e cabarés estavam sempre lotados por grupos animados, que queriam aproveitar alegremente os novos tempos. Viver nessa cidade, considerada centro cultural do mundo, era como recuperar cada dia perdido nos tempos negros da guerra, criando na cidade uma atmosfera de eterna comemoração.

Muitos partiram do Brasil para lá. Os ricos e aristocratas, e principalmente os artistas e intelectuais, animados com o clima de vanguarda que começou a imperar em São Paulo, iam a Paris para se atualizarem com as novas estéticas em vigor.

Paris transformou-se na terra da pintura e dos pintores, com dezenas de ateliês concentrados em pontos tradicionalmente artísticos, como Montparnasse e Montmartre, e com muitos salões, academias de arte, mostras e exposições realizando-se constantemente pela cidade. Artistas do mundo inteiro lá se encontravam; cada um trazia em seu repertório artístico experiêmcias e pesquisas feitas em seus países; cada um produziu sua arte de maneira independente, criando uma intensa diversidade de gêneros na cidade.

O envolvimento dos brasileiros nesse clima e nos acontecimentos estava condicionado às suas condições econômicas. Tarsila, Paulo Prado, Olívia Penteado, representantes da aristocracia rural; e Oswald de Andrade, herdeiro de imensas fortunas imobiliárias constituídas por terrenos que iam da avenida Doutor Arnaldo ao Jardim América, em São Paulo, puderam viver intensamente toda a agitação de Paris durante os longos períodos que ficaram na cidade.

Dona Olívia era chamada por Oswald de 'Nossa Senhora do Brasil', em razão do seu grande prestígio social e do mecenato artístico. Ela possuía um luxuoso apartamento na requintada Avenue Hoche, considerada uma segunda embaixada brasileira em Paris, por receber frequentemente nomes importantes da elite nacional. A invasão de brasileiros milionários na cidade fez com que os franceses zombeteiramente se referissem a todos os que tinham poder econômico por meio da expressão 'riche comme un brésilien' (rico como um brasileiro).

Tarsila, também muito bem instalada, montou seu ateliê na Rue Hégesippe, local nobre da cidade, onde iniciou seus trabalhos. Vestindo o melhor da alta costura francesa, recebia em sua casa intelectuais e artistas famosos, como os músicos brasileiros Souza Lima e Villa-Lobos; o escritor Sérgio Milliet; o suiço Blaise Cendrars; e a pintora cubista francesa Marie laurencin, entre outros. Frequentava também almoços e jantares oficiais oferecidos à vanguarda artística e literária francesa e brasileira pelo embaixador Souza Dantas para promover nossos artistas em Paris.

Nesses eventos, Tarsila conheceu Girandoux, Jules Romains, Blaise Cendrars, Darius Milhaud, Superville e André Lhoete, pintor nascido em Bordéus, com quem ela fez estudos de pintura. Conheceu também o intransigente pintor bretão Fernand Léger, fazendo estágio em sua academia.

Em 1923, o casal Oswald e Tarsila compartilhou a mesma residência, embora ainda não fossem oficialmente casados. Os dois estavam completamente integrados ao ritmo frenético de Paris. Em maio desse mesmo ano, Oswald fez conferência na Sorbone com o título "O esforço intelectual do Brasil contemporâneo", na qual citou também os feitos de seus amigos modernistas da Semana de 1922.

Tarsila, além da desenvoltura e do brilho social, assimilou a dinâmica estética em voga e atingiu grande evolução artística, abandonando aos poucos a linguagem impressionista e dirigindo sua arte pelos princípios do cúbismo. Durante os tempos em que estevem em Paris, correspondeu-se com Mário de Andrade, amigável e calorosamente. Em carta de 19 de dezembro de 1922, Mário, admirador da pintora, disse-lhe:

Escrevo-lhe para lhe dizer que evoco de vez em quando a sua imagem. É um prazer. Sinto-me tão feliz ao teu lado. Essa felicidade que vem da confiança mútua, nada de preocupações ou dúvidas. Uma amizade muito grande, lindo oásis, nesta vida de lutas, de ambições, de invejas e...segundas intenções. Tarsila, você não imagina o bem que me faz.

Nessa época, a pintora estava mais atualizada com o modernismo. Depois de ir  a uma exposição com Oswald sobre 'Arte Negra', pintou o quadro A negra, tela a óleo cujo motivo é a figura agigantada de uma mulher negra, de lábios grossos, olhos amendoados e seios enormes. Essa obra é tida como a primeira manifestação da antropofagia, movimento artístico e literário iniciado e divulgado a partir de 1928. A figura da negra estaria novamente presente em quadros que Tarsila executou durante o Moviemnto Antropofágico, como Abaporu e Antropofagia.

Em setembro de 1923, Anita chegou a Paris. Instalou-se no modesto e pequeno Hotel Central, na rue Du Maine, em Montparnasse, bairro com muitos ateliês e residências de pintores. Nesse mesmo hotel já estavam morando Brecheret e Di Cavalcanti, com sua mulher, Maria. Os três amigos, de poucas posses, levaram vida simples, comendo em pensões baratas e sem participar dos prazeres mundanos da cidade, como seus ricos amigos modernos.

Logo que Anita chegou, Tarsila foi visitá-la no hotel. Nessa época as duas amigas começaram a se desentender. O cotidiano de Anita era pacato e modesto, e ela passava pelas privações a que a verba de uma bolsa de estudos a sujeitava; já Tarsila levava uma vida farta e glamorosa, patrocinada pela fortuna paterna. Vidas distintas, diferenças artísticas, o ciúme de Anita com o entusiasmo de Mário por Tarsila e o conflito natural gerado pela competição pelo sucesso distanciaram as duas pintoras. Tarsila avançava em suas pesquisas cubistas, e Anita, recém-chegada, repensava sua trajetória artística.

Por vários meses Anita peregrinou por exposições, ateliês, galerias e academias livres com modelos vivos. Observou tudo o que acontecia nesses ambientes de grande diversidade, em que artistas de diferentes lugares do mundo conviviam com correntes estéticas variadas, como o fauvismo e o cubismo de antes da guerra, o dadaísmo e o surrealismo do pós-guerra, seguidas por nomes de destaque como Picasso, Matisse, Foujita, Chagall e o escultor romeno Brancusi, entre outros.

A esse grupamento de artistas vindos de todos os lugares do mundo, desde o começo do século XX até a Segunda Guerra Mundial, com atuação importante em Paris e com diferentes linguagens artísticas, deu-se o nome de Escola de Paris.

O expressionismo alemão, que não valorizava a forma, mas sim o emocional, o intuitivo e antagônico aos padrões burgueses, impressionou Anita em sua primeira viagem. Porém, não estava mais em voga quando, contrapondo-se a esse movimento, firmava-se a Escola de Paris, que valorizava o cuidado e o refinamento da forma da obra bem pensada.

Em carta a Mário, Anita falou de sua admiração por Picasso, reafirmando o antigo fascínio por Matisse, que influenciou várias de suas obras importantes produzidas em Paris. Em contato direto com o movimento formado pela Escola de Paris, a pintora continuou suas buscas, pesquisando, reaprendendo, desenhando diariamente nas academias livres e procurando um novo direcionamento para sua arte. Realizou releituras dos fauves, dos cubistas e estudou mais profundamente as técnicas simples, mas marcantes, dos pintores primitivistas, que estavam em voga naquela época.

No início de 1924, Anita mudou-se do Hotel Central e montou seu primeiro ateliê, numa viela da Rue Vercingétorix, em Montparnase. Fora levada pelo amigo Brecheret, a quem chamava de Vicky, que ali já estava instalado e que, nessa ocasião, a apresentou ao pintor Antônio Gomide, na cidade desde 1921.

Logo depois, no dia 29 de janeiro de 1924, ela escreveu a Mário de Andrade contando a novidade: "Em Paris, pintor que não tem ateliê não é considerado pintor". Em seguida, pede-lhe que lhe envie a parcela do pagamento do quadro O homem amarelo, adquirido por ele, pois precisa de dinheiro para comprar pratos, panelas, xícaras e outras coisas para montagem de sua casa-ateliê. E aproveita para desabafar: "Vi que nossa Tarsila enche-te de entusiasmos. Em São Paulo o cubismo foi lançado! Bem bom para mim, só assim me deixam em paz".

Na mesma carta brinca sobre o amigo de Brecheret, dizendo que " Vicky entrou em meu ateliê para se aproveitar da minha tinta, para colorir umas letras. Esse Brecheret é um maldito, pensa que manda em mim como na Simone - ha, ha, ha! [...] Conheci um escultor espanhol engraçadíssimo - o Martinez quis casar-se comigo por motivos financeiros. Mas o Brecheret bateu o pé e não deixou".

Em uma de suas raras saídas na noite de Paris com um grupo de amigos, Anita contou que foi apresentada aos cabarés pelas mãos de Paulo Prado. Ela espantou-se com as bailarinas que dançavam completamente nuas e disse que bastou a ela somente observa-lhes as formas para servirem de modelos para seus estudos.

Anita, Di Cavalcanti, Villa-Lobos, Brecheret e sua mulher Simone, Antônio Gomide e sua irmã Regina Gomide Graz, casada com o pintor John Graz, formaram um grupo de amigos muito próximos; eram os modernistas 'pobres', que se encontravam diariamente. Numa reunião na casa de Villa-Lobos, Anita conheceu também Helena Pereira da Silva, pintora acadêmica e filha do consagrado Oscar Pereira da Silva. A esse pequeno grupo de amigos agregaram-se ainda alguns dos colegas de estudo de seu período nos Estados Unidos: os artistas russos Sacha, Michel e sua mulher, Flor; e as norte-americanas Mildred e Marion, colegas de pensão em Nova York.

Os encontros com os outros amigos modernistas que estavam em Paris tornaram-se raros. Eles se mostraram distantes e desinteressados dos novos rumos que Anita dava a sua arte, ao abandonar o estilo revolucionário da fase norte-americana e dar sinais de aceitação de uma arte de moldada em um 'classicismo moderno'.

Em seu ateliê, Anita recebeu a visita de dona Olívia Penteado, sempre acompanhada de Paulo Prado, e com eles percorreu muitos ateliês de artistas modernos franceses. Os dois compraram muitas obras, trazendo pela primeira vez para o Brasil telas de pintores modernistas como Fernando Léger, Pablo Picasso e André Lhote.

Em meados de 1924, Anita foi passar férias na Itália - primeiro em Lucca, cidade de origem da família Malfatti, e onde ela havia vivido por dois anos quando criança para tratar da atrofia do braço direito; e depois em Veneza, onde encontrou Yan de Almeida Prado, seu colega da Semana de 1922. Na sequência, partiu para Nápoles, onde morava a pintora Zina Aita, sua amiga e também colega da Semana de 1922. As duas passearam juntas por Capri e Pompéia.

Essa viagem pela Itália serviu de inspiração para Anita pintar os quadros Canaleto (Veneza) e Interior da igreja, entre outros. Essas duas obras foram expostas no Salão de Outono de 1924, em Paris, e reproduzidas e elogiadas pela revista especializada francesa Le Crapouillot.

No fim de 1924, acometida por forte gripe agravada pelo intenso inverno europeu, foi a Mônaco, para casa de uma prima, a fim de restabelecer-se no clima mais quente da Côte d'Azur. Ali ela pintaria O grande canal, Porto de Mônaco e O interior de Mônaco, este último a representação da casa de sua prima, obra que se destaca na série de interiores e exteriores na qual trabalhou nessa época.

De volta a Paris, em 1925, resolveu mudar-se para um ateliê mais amplo, na rue d'Alesia. A solidão e a saudade de casa, entretanto, continuavam presentes, amenizadas somente pelas cartas de sua mãe e do amigo Mário de Andrade. Este lhe escrevia continuamente, sempre reafirmando sua amizade e a preocupação com ela, que por sua vez lhe falava de suas buscas, das dúvidas, dos avanços e do desinteresse de alguns modernistas brasileiros pelo novo direcionamento de seu trabalho. Mas o que ela mais reclamava era a presença de Mário em Paris.

Conhecendo bem o temperamento e a personalidade de Anita, mesmo longe, Mário procurava acompanhar e incentivar seu trabalho, estimulando-a a persistir em sua liberdade de desenvolver uma obra inovadora, como fizera em sua fase expressionista. Mas Anita, decidida em seus propósitos, depois da aproximação com os fauves e de seu aprendizado com a Escola de Paris, não se inclinava mais à euforia dos amigos modernistas e não se deixava influenciar pelos conselhos de Mário. A pintura intuitiva e emocional de sua fase heroica era agora substituída por uma pintura mais contida, de traços mais refinados, com cores e formas testadas e estudadas antes de chegar à tela final.

Em carta a Mário, de 23 de fevereiro de 1924, avisava: "Agora, coragem, apronte-se, vou lhe dar uma notícia 'boulever Sante': Estou clássica! Como futurista, morri e já fui enterrada. Não falo a rir, não, pura verdade, pode rezar o 'the in paz' na minha fase futurista, ou antes moderna, pois nunca pertenci a uma escola definida. Não posso forçar-me a agradar ninguém. Nisto sou, fico e serei sempre livre".

Desde sua chegada a paris, Anita havia desenhado incessantemente para exercitar o traço e dominar a mão esquerda. Gostava muito de seus desenhos, pois representavam a vitória sobre sua limitação física. Nessa fase, os desenhos são principalmente de nus femininos, de traços e de formas curvas e ovaladas; opostos aos nus masculinos de sua época de estudos em Nova York, de musculatura densa e formas avolumadas.

Na sua primeira visita individual em Paris, Mário desenvolvia seu trabalho literário original e inovador em São Paulo. Em 1924, começou a escrever Amar, verbo intransitivo, editado em janeiro de 1927;em janeiro de 1925, editou com seus próprios recursos A escrava que não era Isaura, que já havia sido lido debaixo de vaias na Semana de 1922; em janeiro de 1926 editou o livro Losango cáqui, todo dedicado a Anita; em novembro de 1927 foi a vez de O clã de Jabuti; ano em que Anita retornou a São Paulo, Macunaíma.

Em Paris, a pintora mantinha contato com artistas de vários lugares do mundo, vivendo a universalidade cultural da cidade. Enquanto isso, Mário lhe escrevia para contar de seus esforços para implantar por aqui seu trabalho de essência nacionalista, construído com base em uma 'língua brasileira', formada por expressões simples, extraídas da linguagem usual. E dessa forma, em 'brasileiro', escreveu seu Losango cáqui.

A busca da verdadeira identidade nacional, em continuação do ideário da Semana de 1922, era o objetivo de Mário de Andrade e de muitos dos intelectuais brasileiros, como Oswald e Tarsila. O casal, recém-chegado da Europa, organizara uma viagem por vários estados do país, naquilo que os dois chamaram de viagem de 'redescobrimento do Brasil'.

Em abril de 1924, um grupo organizado por dona Olívia Penteado viajou para o Rio de Janeiro e para Minas Gerais, com o objetivo de mostrar o brasil ao poeta suíço Blaise Cendrars, em visita ao país o convite de Paulo Prado. O grupo era composto por Mário de Andrade, Tarsila, René Thiollier, Oswald de Andrade Filho (Nonê), então apenas um menino, e Gofredo da Silva Teles, genro de dona Olívia.

O carnaval do Rio de Janeiro, a Semana Santa e as cidades históricas mineiras, de Aleijadinho e Ataíde, impressionavam o grupo em sua redescoberta das coisas nacionais. "A caravana paulista", como foi chamada pelos mineiros, seguiu depois para Belo Horizonte, onde foi recebida pelo poeta Carlos Drummond de Andrade e pelo escritor Pedro Nava. As cenas típicas do interior mineiro, as casas e as decorações populares, e as paisagens vistas da janela do trem inspiraram alguns quadros de Tarsila e poemas de Mário, Oswald e Cendrars.

Repletos de experiências vividas na viagem, Mário escreveu o poema "Noturno de Belo Horizonte"; e Oswald o livro Pau-brasil, editado em 1925 em Paris, com a ajuda de Blaise Cendrars, e com capa e páginas internas ilustradas com desenhos de Tarsila. A pintora fez sua série inspirada nas 'cores caipiras', que também serviram de tema a outras telas produzidas nessa época. Essas produções na pintura e na literatura representaram uma nova fase no modernismo, como podemos ver nos fragmentos abaixo do "Manifesto pau-brasil", redigido por Oswald de Andrade:

O cabralismo. A civilização dos donatários. A Querência e a Exportação. O Carnaval. O Sertão e a Favela. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. A riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança [...] Contra a fatalidade do primeiro branco aportado e dominando diplomaticamente as selvas selvagens. Citando Virgílio para os tupiniquins. O bacharel. [...] Donde a nunca exportação de poesia. A poesia emaranhada na cultura. Nos cipós das metrificações.[...] A poesia para os poetas. A alegria da ignorância que descobre...Pedr'Álvares [...] A coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-brasil. [...] Bárbaros, pitorescos e crédulos. Pau-brasil. A floresta e a escola. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-brasil.
(Extraído de Pau-brasil, de Oswald de Andrade, São Paulo, Globo, 1990,pp. 65-66)

Em São Paulo, em 1925, Tarsila vivia um momento de grande sucesso entre os modernistas. Com a anulação do seu primeiro casamento, assumiu publicamente o relacionamento com Oswald, com o que formava o casal símbolo da mentalidade e do comportamento dos fervilhados anos 20. Num poema, Mário de Andrade homenageou o casal, chamando-o carinhosamente de 'Tarsiwald'.

Mário escreveu a Anita elogiando Tarsila e contando do seu sucesso. Sensível e emocionalmente muito ligada a Mário, a quem dedicava fortes sentimentos, Anita teve ciúmes de Tarsila. Isso a distanciou ainda mais da amiga, de quem já se separara por divergências de orientação estética.

Conhecendo bem o temperamento possessivo de Anita, Mário redobrou seu carinho e atenção para com ela, incentivando-a e apoiando-a, mesmo distante. A 3 de janeiro de 1924, admirador da arte das duas pintoras, o poeta escreveu: "Tu e ela são a esperança da pintura brasileira. Tu no teu expressionismo, ela no seu cubismo".

Em 1925, algumas novidades alegraram a vida de Anita em Paris. Além da mudança de ateliê para outro maior, mais arejado e mais bem-iluminado por uma lateral toda envidraçada, Elizabeth, sua mãe, chegou à cidade para ficar com ela até o fim do seu estágio. Estava acompanhada do sobrinho Arthur Krug, o Arthurzinho, jovem escultor que havia ido a Paris por causa da Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas.

Essa feira tinha caráter diversificado, com móveis, objetos de decoração e todo tipo de produção, desde o clássico até o futurista. Foi uma miscelânea artística de gosto variado, que durou de abril a outubro de 1925, instalada em diversos pavilhões no cais do rio Sena. Entre os artistas franceses e estrangeiros que participavam, destacou-se o arquiteto Le Corbusier, com seu trabalho de linha puras e livre de excessos. A estética de vanguarda estendia-se às artes aplicadas, como ficou evidente na exposição, e passou mais tarde a ser conhecida como art deco.

A feira foi visitada por artistas e intelectuais de vários lugares do mundo. Oswald e Tarsila, em preparativos pré-nupciais, também visitaram a feira, onde ele comprou para noiva, como presente de casamento, toda a mobília da sala de jantar. Os móveis foram desenhados por Paul Poiret, criador da alta costura francesa e também designer de abajures, estatuetas, louças e outras peças de decoração exclusivas, muito apreciado por Tarsila.

No início de 1926, chegaram também a Paris, para fazer companhia a Anita, a irmã Georgina e a prima Evangelina Pereira de Sousa. Juntas passeavam pela cidade, iam a locais turísticos, museus, galerias e teatros, o que tornou seus dias mais alegres e movimentados. Com o já formado grupo de amigos modernistas, elas promoviam reuniões e jantares nos ateliês, sempre animadas pelo bom humor e piadas de Villa-Lobos, por quem Georgina demonstrou, na época, certo entusiasmo.

Não se sentindo mais solitária, alegre e com companhia dos familiares, Anita passou a preparar obras para expor em Paris. A primeira apresentação nesse ano foi no Salão dos Independentes, aberto de março a maio, no qual participou com Interior de Mônaco e Dama de azul. Sua habilidade técnica e o grande talento de colorista foram amplamente observados pela crítica, que a elogiou em diversas publicações.

Os intelectuais brasileiros, encarregados de informar as atividades dos artistas brasileiros em Paris, noticiaram o sucesso de Tarsila com sua exposição Pau-brasil, na Galerie Percier, o de Brecheret no Salão de Outono e a exposição de Rego Monteiro na Galerie Fabre. Agora, o sucesso de Anita também era notado e chegou aos jornais do Brasil.

Anita havia mandado para Mário de Andrade os recortes das críticas, com reproduções de seus quadros. Satisfeito, ele escreveria, em 31 de julho de 1926, no suplemento paulista A Manhã: "E eis onde Anita Malfatti está agora. Achou de novo a mão perdida e principia depois do turtu veio longo e tão dramático um período novo de criação".

Em outubro daquele mesmo ano, Anita inicia os preparativos para sua primeira mostra individual em Paris, antes de sair em viagem de férias com a mãe, a prima e a irmã ao Sul da França, na região dos Pirineus, fronteira com a Espanha. No final de novembro seria aberta sua exposição na Galerie André, na Rue des Saints-Pères, Rive Gauche, com a presença do embaixador brasileiro Souza Dantas, um grande promotor dos artistas brasileiros em Paris.

A individual, que ficou aberta até dezembro daquele ano, foi composta por 22 óleos, 14 aquarelas e 11 desenhos. A maioria das obras, como Dolly, La chambre bleue, Interior de Mônaco, Limões, Canaleto e Paisagem dos Pirineus, entre outras, havia sido produzida em Paris. Das mais antigas, foram expostas somente a Estudante russa e Tropical.

Novamente, os críticos ressaltaram o talento de colorista em suas pinturas, mas notaram também uma certa dispensão na linguagem artística, resultado de suas constantes buscas e passagens por caminhos diversos durante suas pesquisas. Já os onze desenhos expostos foram unanimemente elogiados pelo público e pela crítica. Considerados limpos, puros e delicados, formavam a parte mais coesa e representativa de sua percepção e expressão artística.

A dispersão, percebida em alguns trabalhos produzidos durante o estágio em Paris, foi resultado não apenas dos vários caminhos percorridos por Anita, mas também consequência das amarras que a atrelavam às regras academicistas da bolsa de estudos que a mantinha. Para atender às exigências, a pintora viu-se obrigada a produzir trabalhos distantes de seus sentimentos artísticos. Durante os cinco anos de estudos, teve de dedicar boa parte de seu tempo a produções que atendessem ao regulamento do pensionato artístico do Estado, que exigia do estudante a apresentação de trabalhos que comprovassem o aprendizado da arte tradicional, incluindo reproduções dos velhos mestres de pintura.

Dentro dessa concepção, Anita pintou as telas Puritas, com ambientação renascentista; e a Ressureição de Lázaro, um tema religioso em estilo acadêmico, muito distante daquilo que produzira em sua fase vanguardista. Este último foi o quadro de maior dimensão por ela em Paris.

Em 1927, surgiram novas oportunidades de exposição. Em janeiro ela participou do Salão dos Independentes com os quadros Dolly e Limões; e em abril e maio participou do Salão das Tulherias com duas obras mais acadêmicas, que passaram despercebidas num ambiente artístico que exigia renovação.

A obra que por fim atingiu essas expectativas de renovação foi exposta em outubro de 1927, A mulher do Pará,, que recebeu excelentes comentários. Original e denotando grande sensíbilidade artística, a pintura retrata a figura de uma mulher solitária em uma sacada de cabelos armados e enfeitados por flores brancas; e com um vestido transparente. Entre várias críticas favoráveis, destacou-se a de Raymond Eschollier, da revista La Dépêche, de 4 de novembro de 1927, em que dizia: "Que agradável selavegeria em Anita Malfatti, brasileira".

Com a aproximação do final de sua bolsa e tendo de finalizar os trabalhos que tendiam às exigências do pensionato, Anita retomou o ritmo das obras acadêmicas. Em junho e julho de 1927, permaneceu em Florença, na Itália, onde fez a cópia da obra Magnificat, de Boticelli. Na cidade, aproveitou para aprender com um velho e conhecido mestre a antiga técnica de pintura sobre folhas de ouro prata, feita sempre com temas religiosos copiados de obras renascentistas.

Em maio de 1928, em Paris, recebeu a autorização do Museu do Louvre para continuar seu trabalho de cópias, que duraria três meses. Ali reproduziu Belle jardinière, de Rafael. Antes de completar o período de seu estágio, em setembro de 1928, Anita embarcou para o Brasil junto com a prima Evangelina - sua mãe e sua irmã já haviam voltado. No Brasil, as três iriam morar provisoriamente no primeiro andar da rua Apa, com o irmão de Anita, Guilherme, sua mulher e a filha mais velha. A volta para casa da rua Ceará se daria apenas em 1930.

Anita Malfatti
A festa da cor
Ani Perri Camargo
Ed. Terceiro nome