Não obstante a irreligião, o surrealismo nunca deixou de se influenciar pelo soterismo. Breton recorre, em seus livros, à cabala, ao hermetismo, à alquimia onde cita frequentemente Flamel, Abraham Guif, Corneille Agrippa, Paracelso, Raimundo Lullo, Eliphas Lévi e outros para deles extrair o mistério supremo do infinito.
Caindo no cerne do surrealismo bretoniano, apercebemo-nos que 'o hermetismo é a pedra angular na qual se inspiram suas concepções fundamentais'. E mais adiante: 'É fora de dúvida que o esoterismo e o materialismo se opõem com a mais viva intolerância. O profano pode lhes julgar também incompatíveis como a água e o fogo, mas não impede que isto seja simultaneamente os dois pólos do pensamento de Breton. O caminho que ele faz de uma a outro pode ser caprichoso, desconcertante, mas é este o exercício dialético essencial do surrealismo. Pode-se mesmo dizer que é a mais alta justificação deste vocábulo a síntese das perspectivas mais antagônicas. E é esta tensão que faz a especificidade e a força do surrealismo.
Carrouges salienta então que a pedra angular da cosmologia surrealista é a noção do 'ponto supremo', que procede do esoterismo.
No 'Segundo Manifesto', que é a grande carta filosófica do surrealismo, Breton faz uma tentativa de conciliar todos os contrários, a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável. A esperança seria então o motivo capaz de determinar este ponto fundamental.
Ainda que a idéia de uma tal ultrapassagem tenha alguma coisa de hegeliano, Carrouges observa que ela tem outra origem: 'Os contrários deveriam tornar-se conciliáveis na medida em que ela se aprofunda na realidade subjetiva da consciência e no universo exterior. Trata-se de um campo que nem sempre é possível de perceber as diversas formas do ser como realidades essencialmente heterogêneas. Isto não é um ponto teórico, mas uma área super-humana de que não será sempre inacessível à exploração pelo homem'.
Micheline Tison-Braun em seu Dada et le Surréalisme assevera que Breton, cada vez mais atraído para o ocultismo, pensa, como os alquimistas do século XVI, que poderia existir entre o homem e o cosmos correspondências secretas de que seríamos advertidos por certos sinais. 'Estes sinais, observa Micheline, seriam certam certas simpatias e aversões inexplicáveis (ex: aquelas que ela nota no início de Nadja; as aproximações de palavras na escritura automática, tão bem como os reencontros e os achados presentes no L' Amour Fou). Todos este fenômenos, geralmente atribuidos ao acaso, teriam um sentido profético e poderiam também nos esclarecer quanto às leis do universo sobre o nosso destino: a chave deste pensamento que, se seguirmos este método de observação e pesquisa, teremos condições para vermos dissipadas as antinomias aparentemente intransponíveis entre a natureza e o homem, entre a realidade e o sonho, ou entre diversas faculdades humanas (tais como a percepção e a imaginação). Assim, o desenvolvimento da faculdade poética atualmente realizado pelo pensamento lógico concederia no homem sua unidade perdida'.
Esclareçamos que no universo do surrealismo bretoniano 'não há propriamente um império transcendental situado por cima da realidade terrestre como se existissem dois mundo inteiros e separados, tais como o céu e o inferno nas visões de Dante, pois o surreal contém nele mesmo toda a realidade terrestre, mas transverberada pelos raios de uma luz fantástica. O surreal não se confunde com o irreal, pois ele é a síntese viva do real e do irreal, do imediato e do virtual, do banal e do fantástico. Igual afirmação não parece logomaquia senão na medida onde compartimentado, ao passo que o surrealismo é uma torríada de consciência de suas múltiplas conjunções.
Carrouges observa que a respeito das posições de Breton, mesmo no período em que estava influenciado pelo marxismo, suas idéias conciliatórias acerca das antinomias nunca desapareceram.
Desta feita, escreve o próprio André Breton, em Vasos Comunicantes: 'Desejo que o surrealismo não passe por nada ter tentando de melhor que o de lançar um fio condutor entre os mundo muito dissociados da vigília e do sono, da realidade exterior e o interior, da razão e da loucura, da calma do conhecimento e do amor, da vida pela vida e da revolução'.
Mas, como observamos, nesse período, Breton estava numa tremenda crise de autocrítica, já que a sua cosmologia surrealista estava ameaçada de ser submergida pelo materialismo. Mas o líder surrealista soube reencontrar-se e assim, em 1937, escreveu novamente nos Limites non frontiéres du Surréalismoe:C'est par l'appel a l'automatisme sous toute ses formes et à rien d'autre qu'on peut espérer resoudre, en dehors du plan éco économique, toutes les antinomies qui, ayant préexisté à la forme de régime social sous laquelle sous vivons, risquent fort de ne pas disparaltre avec elle. Ces antinomies demandent à ce qu'on s'emploie à les lever parce qu'elles ausst une servitude temporelle et que souffrance, pas pius que l'autre, ne doit veille et du sommeil, de la realité et du rêve de la raison et de la folie, de l'objetif et du subjectif, de la perception et de la représentation, du passé e du futur, du sens collectif et de l'amour, de la vie et de la mort mêrme'.
Citando Niestzsche no L'humour noir , Breton reafirma as posições deste tendentes a plenificar a vida, a fortalecer o super eu, a significar a vontade no sentido de chegar à autonomia absoluta sobre o cosmos e o fatum.
Mas eis que o surrealismo não se atrela ao esquema cíclico e determinista do nietzcheismo para ascender a uma forma capaz de operar uma síntese não só do materialismo como de certas formas do pantéismo, nisto que ele parte da concepção cabalística do 'ponto supremo' que está no coração de todas as doutrinas ocultistas e assim caminha para consagrar não uma dialética do tipo de Hegel, mas uma que abre perspectivas para atingir uma dialética absoluta e total.
Pois o 'ponto supremo' a que alude Breton não constitui o irreal, ele contém ao contrário a totalidade do real. É verdade que visto do interior da esfera do cosmos ele parece incompreensível submerso pela onda múltipla das aparências e dominado pelas antinomias.
No esoterismo, a presença de Deus, imanente à obra da criação, está sempre escondida. Ora, dentro dessa concepção, diz Carrouges, até um ateu pode assimilar concepção semelhante.
De qualquer modo, o surrealismo é uma forma ativa de vida, ele é um encaminhamento metafísico, que tende simplesmente à recuperação total das forças psíquicas. O processo é a descida aos recônditos do eu, a iluminação sistemática dos lugares escondidos e o obscurecimento progressivo de outros lugares, o passeio perpétuo em plena zona interdita e que sua atividade não corre nenhuma chance de tomar fim, tanto que o homem chegará a distinguir um animal de uma chama ou de uma pedra. Ora, isso é o que se lê nos manifestos bretonianos.
Tendo uma atividade psíquica intensa, mas sobretudo hermética, o surrealismo se opõe a todo esquemismo evolucionista que parta do inanimado ao animal, deste ao homem primitivo, deste ao civilizado. Não aceita, portanto, as teses darwinistas, nem as positivistas. Imagina outra curva, partindo da crença num paraíso perdido onde o homem vivia sem radificar-se a um local, mas em harmonia com as forças da natureza e as energias divinas. O homem, assevera Carrouges, estava, então, mais próximo do 'ponto supremo' do hoje a despeito dos prodigiosos progressos históricos até agora realizados.
Naquele paraíso tudo era possível e permitido ou quase. É aliás, por este quase misterioso que, segundo Carrouges, se introduziu a ruína, isto é, a queda de onde provém a condição miserável do homem sobre a terra. O minimizar as consequências desta queda e de reproduzir o homem habitado um região de maravilhas - a tarefa particular que se confere ao hermetismo é a de permitir a certos iniciados de antecipar a hora desta recuperação dos poderes perdidos.
Carrouges observa que o esquema acima é válido, de forma geral, para os hermétistas judeu-cristãos e muçulmanos. Afirma que são encontradas concepções análogas em todas as mitologias primitivas e mesmo entre os chineses e os indus. Mas é digno de nota ver reaparecer esta idéia da recuperação dos poderes perdidos no centro das perspectivas surrealistas, apesar dos corretivos ateus, ainda bem assentado em dificuldades insolúveis.
Pois o mal do ateísmo é o de unilaterizar a visão profunda do homem e dificultar que ele vá adiante de si mesmo na decifração de certos mistérios e enigmas que podem ser buscados no intemporal.
Breton assinala que, fora de todo dogma religioso, o surrealismo entende descobrir no fundo do ser humano um domínio misterioso pelo qual ele se comunica sem solução de continuidade com o 'ponto supremo'. Diz Carrouges que 'o obstáculo que dele nos separa nçao está tanto fora de nós mesmos, ele consiste neste limiar enigmático que separa nosso eu usual de nosso eu mais profundo, ond eo singular imerge totalmente no universal, onde a lucidez não fez senão um só sentido com o mistério cósmico: É porque o instante do ex-tase e da iluminação exerce assim uma grande fascinação sobre os surrealistas, porque parece realizar esta fabulosa esperança de um mergulho do homem no integral'.
Breton fala então de manifestações objetivas da existência, de manifestações mais ou menos deliberadas que se exercitam quase sempre num campo que lhe é inteiramente desconhecido. E o espírito humano, assinala Carrouges, 'não é um fundo de saco, uma simples dependência do corpo fechado no cérebro, ele é um imenso abismo do qual o ponto de inserção na vida material se encontra no seu interior, mas daí irradiado em todas as direções para unir o homem a todas as regiões mesmo as mais secretas do universo visível e invisível. É neste abismo que se acha o caminho da conquista dos mundos sobre-humanos. E mais adiante: 'Há, no homem, no mais profundo de sua interioridade, uma região misteriosa que ultrapassa a condição humana e que a comunica com o 'ponto supremo'.
É que o olho do espírito discerne alguma coisa que se passa longe de nós, ao passo que o olho da carne não vai além do que lhe está posto: nosso corpo não se posiciona até onde leva seu olhar, ele não pode ocupar simultaneamente duas posições diferentes nem se aventurar muito longe se o colocamos cada noite debaixo do mesmo teto'.
É preciso então ir além das sensações normais e dos conhecimentos positivos que nos aprisionam. Se aí permanecemos não poderemos jamais ultrapassar o círculo que nos rodeia.
Procura-se aqui uma rejeição ao campo limitado do corpo, redescobrir o homem num plano mais amplo, numa alargamento de perspectivas onde as realidades cósmicas se casem com a realidade humana.
Por ora, o homem está preso aos escombros de uma vida miserável, ele não está mais num paraíso como o paraíso primitivo onde o homem vivia na mais íntima conexão com a natureza.
O aspecto de nossa civilização nos apresenta uma sociedade ruiniforme e nossa vida sofre os tristes efeitos de uma massificação esmagadora e verdadeiramente alienante.
A procura do 'ponto supremo' está no seguir um rumo que tenha como objetivo fazer desaparecer a fissura que se abriu no relacionamento corpo-espírito, rejeitando as unilateralidades que se criaram à custa de concepções formalizadas e penetradas de racionalismo e de empirismo exclusivista. A descida às profundidades da consciência, às profundezas do eu, constitui um passo para que o homem se levante de sua queda, se liberte daquela concepção fatalista que o levou a crer ser um ente decaído de antemão.
Neste caso, o surrealismo se insurge contra a concepção bíblica do pecado original, contra a 'má consciência' nitzscheana, não admite o castigo merecido, nem a maldição advinda dos poderes que o expulsaram do paraíso. Seu mandamento é justamente o contrário daquele que os crentes procuram cumprir, isto é, o de obterem os favores celestes numa tentativa de reconciliação do mal com o bem. No surrealismo, prevalece a doutrina de uma cooperação de todas as forças chamadas malditas para tentaar a grande obra de recuperação dos poderes perdidos.
Deus, no sentido bretoniano, não passa de um ser de vingança, de um ente vingador e agressivo no mito da maldição. Então, apela para os ocultistas, para as forças restauradoras do amor humano, pois só este é capaz de regenerar o mundo e só por ele a maldição poderá ser suprimida.
A despeito de sua inclinação para o esoterismo, breton mantém suas constantes reservas sobre a existência de espíritos e sobre 'a enervante literatura espírita'. Abomina os 'espíritos guias' e zomba dos pobres mortais que se dão ao trabalho de admoestar o diabo. Repele os exorcismos, tudo isso mostrando um caráter que lhe imprime o seu materialismo fundante. Neste caso, na obra surrealista, ceticismo, materialismo e sobrenaturalismo não cessam de se mesclar, de interagir, formando uma síntese complexa, por vezes desnorteante, onde inere a imaginação criadora.
Veja-se, por eemplo, a topologia mítica do surrealismo onde os 'chateaux hantés' constituem um leit motivo essencial da simbologia de Breton. 'Nada de mais excitante, escreve ele nos Vasos Comunicantes, que esta literatura romanesca, arqui-sofisticada. Todos estes castelos de Otrante, de Udolfe, dos Pirineus, de Lovel de Atlin e de Dumbayne percorridos por grandes lagartos e carcomidos nos subterrâneos, na ponta mais entenebrecida de meu espírito persistiam viver em sua vida factica, apresentando sua curiosa fosforescência.
Não é bem diferente a visão fantástica e imaginosa de Louis Aragon que no seu Payson de Paris demonstra o grande fascínio por certos lugares qye ele gostava de frequentar. A paisagem pela Ópera e os Buttes-chaumont lhe traziam inspirações misteriosas e extraordinárias 'Nossas cidades são povoadas de 'esfinges desconhecidas' em torno das quais' reina a luz moderna do extraordinário'. Ela reina caprichosamente nestas espécies de galerias cobertas que são numerosas em Paris, criculando os grandes boulevards e que se denomina de uma forma pertubadora de travessias, como se esses corredores furtados ao dia não permitissem a ninguém de aí permanecer mais de um instante.
Aragon, diz Micheline, esboça uma 'metafísica dos lugares', estes lugares que ele chama de praias do desconhecido, reino da sombra, fechaduras que fecham mal sobre o infinito. Esta idéia deve ser reaproximada de Une nage de rêves'.
Não surpreende esse fascínio que sobre nós exerce certos lugares. Pois há verdadeiramente os que nos inspiram e até os que nos infundem terror. Os que nos inspiram muitas vezes são evocativos e provocam sensações agradáveis, suaves embrevecimentos, que se renovam, motivando nossa imaginação. Lugares como objetos, casas, jardins, estátuas, bosques, cursos d'água, lagos, tudo o que ocorre no mundo espacio-temporal se orienta à nossa consciência para nos sensibilizar e dar expressões qye culminam na elaboração de obras e símbolos.
É somente, comenta Carrouges, 'a aproximação do fantástico, neste ponto onde a razão humana perde seu controle que há todas as chances de se traduzir a emoção como a força mais profunda do ser. Os cismas sociais permitem por inteiro à consciência observar as profundas rupturas interiores que lhes são concomitantes'.
Fatos como estes citados por Carrouges relacionados com Louis Aragon e Chirico merecem ser conhecidos através de Peinture. 'Lembrava-se Aragon, como eu, de uma noite em que estava na praça Pigalle com Chirico, dorso voltado para a porta não o tinha visto entrar. Aragon tomado de um comportamnento estranho indaga se aquele não era um fantasma. Chirico sacando de um pequeno lenço e após encará-lo, por algum tempo, na época Aragon dava no Paysan de Paris uma dos parques dos Buttes - Chaumont. Chirico descobria, por seu turno, o mistério de Versalhes onde cada ângulo do pálacio, cada coluna, cada janela tinha uma alma que era um enigma. Era o tempo dos fantasmas pretensamente objetivos, mas este tempo já é findo'. Não era isto, pergunta Carrouges, uma doença infantil do surrealismo que ele deve suplantar em virtude de sua própria crítica? Em que direção poder-se-ia então encontrar uma nova rota para os fantasmas senão neste abismo que Breton tinha aberto no seio de seu próprio eu? E eis que este abismo aberto em outros se revelam'.
Assim, experimentar-se a si mesmo como fantasma é um fenômeno mental que possuía uma significação extremamente concreta. Isto indica a que ponto a gente pode sentir-se estranha a si mesmo, ser exibido em seu 'eu' usual, arrastado nos subterrâneos mentais, ameaçado por ruídos longíquos que ascendem das lavas subterrâneas do labirinto mental. O mundo exterior começa a ser sacudido pelos pródromos de um cisma de natureza desconhecida. O homem descobre então em si mesmo uma vasta trama de palavras, de imagens e de pensamentos que ele não conhecia, e na interferência do seu eu e do mundo, um sutil entrelaçamento de premonições e coincidências mágicas. Seu próprio espírito vem a ser campo de projeções para as potências ocultas'.
No final de contas, há uma rejeição. Breton, repelindo a fé nos fantasmas, não deixa de ser habitado por seu espectro. Tende a lhe fazer reaparecer sob o projetor da subjetividade. É que, para ele, o valor da arte vem muito menos de seu interesse estético que de sua capacidade evocadora.
Em Breton, vemos uma rejeição completa da arte segundo os modelos clássicos em que as obras aparecem como coisas em si, como valores absolutos ou acabados. Neste caso, a realidade seria tomade de uma forma arbitrária, criando impasses entre o que está acima do homem e o que surge do homem. Assim, no surrealismo a obra é imanente à consciência humana, pois só esta tem o condão especial de criar as coisas e dar-lhes o sentido de sua finalidade. No caso dos fantasmas estes não passam de imagens que vivem uma vida real porque são modos de manifestações de nossa própria vida humana entrelaçada na objetividade.
É assim que dentro de manifestações tão subjetivas se explica a descoberta surrealista da linguagem automática de que falaremos mais adiante e que, segundo Breton, se reduzem a certos fenômenos ligados ao desdobramento da consciência.
Certa ambiguidade nesses pronunciamentos surrealistas é observado por Carrouges ante a projeções espectrais e ao que está submerso no mundo das trevas, que não podem ser levados exclusivamente à conta do pitoresco e de seu valor poético. Observa-se, inegavelmente, um pendor irresistível para a exploração desses temas sobrenaturais. Breton era mesmo um místico, uma figura fantasmagorial que dava ao 'acaso objetivo' uma alta significação da vida artística.
Vejamos, por exemplo, a história da 'casa da discórdia' citada por Carrouges e contada pelo próprio Breton no L'Amour fou, uma sorte de domínio maldito, uma transposição moderna dos lugares assombrados. Nesta narrativa se exerce uma ação local e onde se constata um caso típico de medo pânico no estado puro.
Em Nadja, observa Carrouges, Breton parece ter experimentado com angústia esta ambiguidade fundamental do 'acaso objetivo' e sua ligação algumas vezes profunda com as forças tenebrosas. E carrouges se pergunta se a intuição não teria somente iluminação poética, exploração, pré-científica, de balizas assentadas em torno da rota do 'ponto supremo'.
De qualquer modo, o surrealismo bretoniano não se desliga desses sinais, desses símbolos que vão desembocar nos mistérios da magia, dos romances negros, dos humores negros e esta questão dialética dos mundos visíveis e invísiveis, do preto e do branco, dos fenômenos abertos e ocultos parece ficar em suspenso. Mas não fica. Pois ele vai confinar-se num materialismo ocultista a expensas do culto da decifração da pedra filosofal, que é a pedra da sabedoria.
O surrealismo no afã de descobrir forças que tragam a libertação do homem não esmorece no sentido de penetrar nessas fontes da magia e do ocultismo que procuram encontrar uma conciliação do mundo cósmico com a vida interna de cada um.
'Cada artista, já assinalava Breton, deve retomar por si a perseguição do tesouro de outo'. Ora semelhante perseguição no dizer de Eliphas Levi, citado por Breton, se casa com o hermetismo existente na velha Grécia. Nos Pas Perdus, Breton escreve que não há leitura segundo a qual não se possa continuar a procurar a pedra filosofal.
Com efeito, assinala Carrouges, 'esta atração para a alquimia é muito natural se nota que ela poderia definir-se como o surrealismo: uma espécie de oculto materialismo. Certamente os alquimistas não eram materialistas, mas a matéria é a base sólida de sua 'grande obra'. Suas aspirações poético-místicas se desembaraçam de suas experiências materiais como a chama se eleva dos objetos em combustão. Há, aliás, um estreito parentesco entre a matéria prima da alquimia tradicional e esta da alquímia surrealista. Esta última retoma em seu material verbal a evocação dos minerais e dos elementos que foram privilegiados pelos alquimistas de outrora. Bem entendido, seus glossários não são exatamente idênticos, mas nos dois casos há uma utilização preferida de símbolos minerais como as pedras de outo e de elementos como o fogo e a água'.
Carrouges observa que a linha de conduta entre os alquimistas tradicionais e os surrealistas era idêntica: tanto estes como aqueles passavam do real ao imaginário, observando-se assim que os antigos tidos por Breton como precursores do surrealismo inseriam nos seus trabalhos materiais reforçados de uma poderosa aura de sonhos e meditações poéticas.
Citando vários alquimistas, poetas e pintores, Carrouges assevera que a poesia e a pintura surrealista renovam as daqueles estabelecendo uma continuidade. 'Nada de mais natural, diz ele, que ver Breton identificar o espírito de Max Ernst a este do arquifeiticeiro' o grande Cornelle Agrippa (Peinsture, p.162) ou da pintura de Wolfgang Paalen: sua pintura tem as plumas do pássaro maravilhoso, de cores vivas, que passa nas Noces Chymiques de Christian Rosenkreuz e tem o poder de restituir a vida.
Adverte, ainda, Carrouges, que não são somente as matérias e as formas das duas escolas que se assemelham, há uma comunidade de inspiração mais profunda que os une: o objetivo que eles perseguem, sua intenção essencial. 'Para se captar a verdadeira significação da alquímia no surrealismo - é preciso buscar na reconstituição da vida ou na procura da eterna fonte da juventude isto que ela concorre para proceder à metamorfose psíquica do homem.
É preciso não esquecer que a pesquisa do elixir da eterna juventude esteve sempre presente entre os alquímistas.
Carrouges observa que a descoberta da pedra filosofal não era somente condicionada pelas receitas pré-científicas, mas também pela exigência moral de uma especial pureza, lembrando para tanto os manifestos de Breton e mais adiante pela meditação contínua de uma gnoseque devia consuzir menos à posse de vantagens materiais que a um contato mais íntimo com a divindade no ato de penetração dos mistérios da criação.
Lembra Grillot de Givry citado por M. Carrouges a uniformidade existente entre toda a literatura alquimica na qual mostra existir entre seus adeptos a mesma orientação no sentido de uma identidade entre a criação do cosmos e a operação pelo qual realizam a 'grande obra'.
No tato com os metais à procura da pedra filosofal os alquimistas costumavam colocar estes sob a proteção dos deuses, tais como Mercúrio, Venus, Marte. Para os alquimistas, a exemplo do homem primitivo, toda a natureza física estava vinculada ao sagrado. Era uma concepção total do Universo, fazendo-nos até lembrar o pneuma cósmico do estoicismo.
Assim, a objetividade da pedra filosofal tendia menos a fabricação pura e simples do ouro do que a uma metamorfose interior a qual estas manipulações exteriores os ajudavam de uma forma quase sacramental. Mas a transposição alquímica dos metais iria corresponder a transposição alquímica do verbo já delineada por Rimbaud, um dos grandes devanciers do surrealismo. neste caso, a alquímia do verbo iria encontrar na poesia como um genuíno processo de alquímia mental.
Mas, como tão bem observa carrouges, 'para que haja verdadeiramente na poesia moderna uma tentativa comparável a esta alquímia, não basta que ela produza textos de uma grande beleza ornamentados de uma misteriosa obscuridade, não basta mesmo que ela acaricie a perfeição, a transfiguração futura do homem, como é o caso da obra de Éluard. É preciso que ela tente fazer penetrar realmente o homem nos mistérios dos cosmos (isto que era já a finalidade da 'grande obra', é preciso que ela seja uma ação mágica, que ela comece a atualizar a metamorfose, que ela faça começar a purificação do ser pelo desenvolvimento do liame luminoso da vidência entre as profundezas inexploradas do homem e do universo. É bem porque o surrealismo tem como menina de seus olhos a escritura automática, que como se sabe, exclui toda premeditação, todo controle da consciência. Ela vai além da desobstrução do inconsciente analisando por Freud, ela tem uma mensagem (sem mensageiro instituido) por instrumento de eleição pelo qual o 'acaso objetivo', isto é, o mistério cósmico encarado como uma sorte de anima mundi, começa s se revelar ao homem'.
Ninguém melhor que Breton para explicar este clima, quando nos Manifestos, assinala: 'Eu peço que se observe bem que as pesquisas surrealistas apresentam com as pesquisas alquímicas uma notável analogia de finalidade: a pedra filosofal não é outra coisa senão isto que devia permitir à imaginação do homem de tomar sobre todas as coisas uma revanche resplandecente'.
Esta revanche, no dizer de Breton, deve exercer-se arbitrária e subjetivamente pela escritura automática. A transmutação do homem se consubstancia no dizer poético, que ganha foros verdadeiros de ação sagrada. Mas ela pretende operar também por uma transmutação exterior, uma metamorfose interior que está subentendida na amplitude dos cosmos. No caso do surrealismo, diz muito bem Carrouges, 'pela conjunção da escritura automática e do acaso objetivo, pelos pródromos de vidência e da futura glorificação do homem, inaugura uma tentativa de metamorfose do homem e do universo. Assim, a alquímia é poesia no sentido mais expressivo do termo e o surrealismo é verdadeiramente uma transmutação alquímica. Pela transmutação da matéria mineral ou verbal, tanto um como outro tem por finalidade a metamorfose do homem e do cosmos.
Lembremos que na alquímia se pretenda abarcar todas as forças antagônicas da natureza para operar a grande transfiguração do homem. Já se vê, portanto, que esta nova alquímia tomou o homem como matéria prima, considerando que a pedra filosofal só existe no espírito humano.
Dito isto, é fácil aprender a tendência do surrealismo no sentido de operar uma desintegração total, para em seguida avançar no sentido de um ponto de reintegração que representa a síntese de todas as antinomias. A desintegração deixa assim de ser um fim, mas uma etapa preparatória de reconstrução que se renova sempre. É justamente, neste ponto, que o surrealismo se diferencia do dadaismo que pretendia violentar a própria essência de vida humana, destruir tudo sem nada acrescentar. O dadaísmo não levava a nada. Ficava, apenas, na desintegração.
Já o surrealismo tinha como missão 'predizer a entrada da humanidade no reino deslumbrante das maravilhas', servindo da poesia como de outras artes, e da vida inteira para prefigurar o advento de um reino fabuloso. É neste sentido, como assinala Micheline Tiso Braun que a poesia é sempre uma descoberta, pois suas criações não são queridas, mas reveladas'.
Mas o surrealismo não é só predição ou prefiguração, pois ele também é práxis, já que pretende confundir a humanidade para a finalidade que entreve. Dentro desse espírito que o anima, tudo ´emobilidade, renovação, dialética. O imobialismo não para no espírito surrealista que desconhece a estagnação. Sua criatividade imprevista, instantânea, resulta de 'um dom gratuito do acaso'.
No espírito surrealista, há como que um abismo que nos separa deste mundo que Dali chamava 'a terra desejada dos tesouros'. Impossível, diz Carrouges, entrar nesta terra, sem atravessar o abismo. Com efeito, aqui se reencontra a dialética perpétua da existência. É preciso sempre atravessar o inverno antes de se chegar a primavera, ao mar ou às montanhas antes de entrar nas regiões longíquas, à morte antes de entrar no empyreée. Certamente em seus momentos de exaltação, o surrealismo se gaba de convicção de que é possível alcançar o empyrée sem passar pela morte, mas não evita a necessidade de atravessar uma sorte de ersarz da morte: uma zona de perigos e destruição, aliás, os grandes místicos não alcançavam ao casamento místico senão após ter também experimentado vivos os terrores como estes da morte'.
O poeta surrealista aspira a chegar ao 'ponto supremo', por isso não mede esforço para dominar o Todo, dilacerando-se a si mesmo e procurando no caos interior uma revelação permanente da beleza e da esperança. Essa busca do revelar-se nunca tem fim, pois está no amago das forças do homem o criar, o ir além de si mesmo para o mais alto pináculo de uma espiral indefinidamente ascendente e como que a transpor oposições cada vez mais fortes que as precedentes. Tomando a um momento dado, dis Carrouges, soma todos os antagonismos que existem neste instante, mas esta síntese mesmo resulata de novos desenvolvimentos da vida, de sorte que as novas oposições vão sendo suplantadas indefinidamente.